regimento (regulamiento)

A vida em condomínio é regida por uma série de burocracias que organizam a vida compartilhada. Há leis e códigos civis com abrangência nacional; a primeira é a número 4.591 que data de 16 de dezembro de 1964 e foi sancionada pelo militar Humberto de Alencar Castello Branco. Há também as leis específicas para cada unidade condominial como a Convenção do Condomínio, que trata da estrutura do condomínio e do direito dos condôminos e o Regimento Interno que rege a convivência entre os condôminos. As leis específicas tem que estar baseadas e respaldadas pela lei nacional.

O museu do louvre pau-brazyl aconteceu no ambiente residencial do Condomínio Edifício Louvre e lidou com as suas entranhas burocráticas que organiza a vida de mais de 600 pessoas dividas em aproximadamente 300 apartamentos e um quadro de 60 funcionários durante os cinco anos do projeto. O prédio, representado pela sua administração, sempre esteve disposto a dialogar, com uma abertura bastante generosa para dar passagem a um projeto que mexia tanto com a percepção daquele espaço.

Entretanto, há 2 objetos expostos no térreo e no mezanino do prédio que destoam desse espaço permeável ao movimento. Tratam-se de duas cópias emolduradas das “Principais Normas do Regimento (Regulamento) Interno” penduradas nas paredes da caixa de mármore central no hall do Pedro Américo. Esse documento data de outubro de 1987  evoca tanto à lei de 1964 e como à lei número 6.434 de 1977 sancionada por Ernesto Geisel, que são legislações bastante técnicas sobre verificação contábil, garagens e assembleias, por exemplo, mas também estão simbolicamente carregadas de sombras do período do regime ditatorial. Vale destacar o artigo 2 do Regimento: “Todos devem devem zelar pela boa reputação do seu prédio” e o artigo 22: “O Síndico e qualquer membro da Administração podem proibir a entrada ao edifício de pessoas mal trajadas, suspeitas, imorais, portadoras de doenças infecto-contagiosas ou de quem julgar conveniente, a bem da reputação, moral e bons costumes”.

Esse Regulamento de dois anos depois do fim oficial da ditadura militar imprime uma ideia da família que marchou com Deus pela liberdade e que oprime o que é diferente da heteronormatividade. Essas Normas condensam uma série de pressupostos, projetos e mecanismos de controle aos moradores do Louvre, que, apesar de ilegais aos termos da Constituição de 1988 e da própria Lei do Condomínio revisada em 1996 permanecem por escrito, datilografadas, em um papel envelhecido, reforçando seu caráter de documento histórico testemunho de violências de uma época que insiste em não desaparecer.

O documento relembra também o processo de desvalorização do centro de São Paulo, somada à transformação da região em zona de prazer, pegação e curtição da população LGBTQIA+ e as medidas implementadas para evitar que o Louvre atravessasse o mesmo processo que outros prédios vizinhos, como o Copan, na perspectiva de garantir aos proprietários a manutenção da “ordem interna”. Além do Regimento (Regulamento), Artacho Jurado foi chamado para construir uma guarita, ausente no projeto original, para controlar a entrada no prédio, além de grades, para que fosse possível cercar o condomínio – ao menos fora dos horários comerciais – a fim de garantir a segurança dos moradores e das lojas localizadas no térreo e no mezanino.

O artista catalão Enric Farrés Duran que tem extensa pesquisa sobre arquivos, documentos, bibliotecas teve seu primeiro contato com o Regimento em 2017 quando retirou o documento original da moldura, fez uma fotocópia e devolveu a cópia à moldura em um gesto de subversão.

Posteriormente ele começou a trabalhar com inserções e subtrações sutis de letras e palavras, como o acréscimo da letra I em regulamiento que anuncia as diferenças culturais do documento e de quem interfere nele, contrapondo o idioma original com um dos idiomas do artista e cria fricções de significado já no título; há a possiblidade de enxergar uma mensagem subliminar em “miento”, que sublinha o caráter farsesco do trabalho. Com humor e ironia, as regras de convivência que desde criadas só fazem sentido dentro de um período ditatorial e de permissão do controle autoritário sobre a vida do outro, passam a fazer sentido apenas dentro de uma lógica ficcional e delirante, revelando, aos poucos, a ausência completa de sentido de seus termos.

Além de mudar as regras, expor seus absurdos e atualizar a data do documento, a obra também faz um convite para que a administração participe do trabalho: duas novas cópias foram impressas e enviadas pelo correio para o prédio com o desejo de que enfim, em 2021, esse documento permeado de violências de tempos históricos seja substituído por uma obra que, ao invés de simplesmente apagar tais artigos, relembra, perverte e nega o sentido dessa e de outras formas de normatização da vida e da convivência.

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