Da Vinci, Rembrandt, Renoir e Velázquez contemplam a avenida São Luís desde o projeto do edifício Louvre na década de 1950, incorporado por Artacho Jurado. Os seus nomes aparecem nas plantas e nos anúncios publicitários da época. Quando o prédio ganha corpo, o nome dos pintores é estampado no alto da porta de vidro de cada bloco e duas gravuras dos artistas são expostas nos respectivos halls.
Pedro Américo também está nos desenhos do projeto do Louvre, seu nome figura no mesmo anúncio publicitário junto aos pintores europeus, entretanto, não existe nenhum rastro seu no espaço. Os cinco blocos do fundo, que deveriam receber o nome do pintor brasileiro, são distinguidos apenas por números.
A partir de janeiro de 2016 o edifício de uso misto se metamorfoseou no museu do louvre pau-brazyl, projeto artístico-curatorial que surge da relação entre o edifício Louvre e o Museu do Louvre em Paris. Em sua segunda edição, o museu do louvre pau-brazyl apresenta uma individual da artista Lais Myrrha com a performance Desdito, em colaboração com Vão, Pio Figueiroa e fanfarras de rua convidadas.
O foco agora está no pintor ausente do edifício Louvre. Interessa-nos, de partida, refletir sobre a divisão estrutural do prédio, o que podem significar as diferenças entre a parte nobre afrancesada olhando para a avenida-boulevard arborizada e marcada com nomes icônicos da História da Arte e o fundo generalizado na figura de Pedro Américo, subtraído do edifício Louvre desde sua inauguração.
A performance Desdito (2017) parte do quadro Independência ou Morte! (1888) de Pedro Américo – imagem forjada como a certidão de nascimento visual da Independência do Brasil – e é composta por músicos de fanfarras vestidos na paleta de cores da pintura e divididos entre as figuras de Dom Pedro I, sua comitiva e a cavalaria.
Da calçada em frente ao edifício Louvre o público da performance escuta, de fora, o som de uma fanfarra escapando pelas grades do prédio. Reconhece-se o Hino da Independência. Aberto um dos portões às 15h, vê-se a banda situada no lado direito das escadarias aos fundos da galeria no térreo. Subitamente, a banda para de tocar e ergue os instrumentos, como espadas, que, junto à tonalidade de cores e à topografia do local, remetem ao quadro.
A mise-en-scène está demarcada de forma explícita. O fotógrafo Pio Figueiroa, que também participa da performance, está posicionado em cima de uma escada e refletores marcam a paisagem. No silêncio, flashs se acendem, e os cliques ressoam como em um estúdio fotográfico: uma imagem está sendo criada, desdizendo o estatuto da independência brasileira, enquanto é revelada a artificialidade e parcialidade das escolhas em qualquer composição estética, que é sempre também ética.
Após a foto, desmancha-se a formação e a fanfarra ganha a calçada, pela primeira vez o pintor brazyleiro é colocado de frente para a avenida São Luís e para os jardins da Biblioteca, às margens da avenida Ipiranga – é o começo do circuito-procissão. Na época do Império, os cortejos se utilizavam ao máximo de recursos teatrais, expondo e afirmando as hierarquias da sociedade da corte. Já em Desdito, o cortejo critica essas relações de poder ao propor que a fanfarra entre por um dos portões da garagem e caminhe pela parte subterrânea do bloco Pedro Américo, expondo espaços que foram projetados para permanecerem o mais oculto possível, a saber, as áreas de serviço. Enquanto o térreo, ponto de partida da performance, é adornado por pastilhas coloridas e mármore, no subsolo há montes de lixo e canos aparentes. Além dos dois andares por onde a banda passa, há um terceiro, o mezanino, acessado pela escada rolante, para onde apenas a figura de D. Pedro I e sua comitiva podem subir ao final do trajeto.
Durante todo o percurso, o Hino da Independência é transmutado no Hino Ainda Pendência que toca incessantemente. A composição e arranjo do músico Henrique Mendonça subverte a música composta pelo próprio Imperador Pedro I. O compositor propõe uma divisão em cinco movimentos: Introdução – A Corte – Solene; Parte 1 – A Esperança – Altivo; Parte 2 – O Império – Com Estranhamento (Ruído); Parte 3 – O Golpe – Rude; e Parte 4 – A Farsa – Com Espanto. O hino tem uma dificuldade crescente de respirar e vai degringolando em outros tons a depender de onde a fanfarra está localizada.
Ao final do trajeto, vê-se novamente o cartório, que faz as vezes de capitania hereditária e de morro do Ipiranga, sobre o qual a banda havia posado. Na escadaria oposta e simétrica à formação inicial, os músicos voltam a se posicionar como no quadro de Américo, agora espelhado. A imagem forjada a partir do quadro torna-se ao final uma terceira, dando a sensação do marasmo da repetição dos grandes fatos e personagens da história, que, como escreveu Marx a partir de Hegel, não apenas são encenados duas vezes, mas a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
Após a performance, as duas fotos produzidas durante a ação são expostas no prédio, mas não funcionam como um mero registro. Através delas, perverte-se a história do edifício, que até então só ilustrava a História da Arte Europeia. Além disso, essas novas imagens condensam uma série de elementos e temporalidades: a história da viagem do príncipe regente voltando do litoral sobre uma mula quando rompe com Portugal, a sua ilustração fabulada pelo pintor, a decoração projetada por Artacho – a escadaria em curva, os adornos dourados desbotados, o tapete verde de plástico –, o 3º Tabelião de Notas de São Paulo sob as escadas, os performers e o público no Brasil de novembro de 2017. As fotos são um resumo de toda uma conjuntura, cujo único futuro possível é seu espelhamento.
O figurino, a disposição espacial dos músicos e as tonalidades do espaço formam manchas de cor que possibilitam o exercício comparativo entre as fotografias e a pintura histórica. A topografia do prédio conecta-se com a geografia social do país; o trajeto revela outros lugares e seus personagens, invisíveis no quadro. Além de colocar a História do Brasil como uma das protagonistas dessa performance, Lais Myrrha também joga luz sobre a relação do corpo com a arquitetura opulenta e também sobre a organização espacial dentro dessas construções. O trabalho lida, assim, com a fisicalidade do edifício-museu: a divisão dos blocos entre pintores, o espelhamento lateral, a assimetria entre frente e fundo e entre os andares, os avessos do Louvre.
Em sua trajetória, Lais Myrrha já investigou outros mitos de origem, mapas, geografias, bandeiras, bases pedagógicas da História do Brasil e de sistemas de poder, a nacionalidade e seus ícones falidos, em ruínas desde que concebidos. Discute convenções como formas de aprisionar o pensamento. Parte também das forças ligadas ao esquecimento; nesta ação, trabalha sobre o que foi dito demais, e de tanto ser dito, é necessário recuar, desfazer, desdizer.
Desdito é uma performance de subtração que rebobina a história neste trajeto em forma de fitas VHS desenhado sobre as plantas baixas do prédio. Desdiz o cinismo em torno de uma independência tutelada por um rei português. Desdiz as assimetrias entre as narrativas, as hierarquias entre os andares da sociedade. Desdiz a mise-en-scène publicitária que cristaliza projetos de poder. Desdiz o ‘nosso grito varonil’ de ‘morrer pelo Brasil’. Desdiz o que o Estado tem a dizer sobre e para a ‘brava gente brasileira’. Desdiz o fato, a tragédia, a farsa e suas imagens.