por entre as vitrines vazias

Não eram lindos e robustos puros-sangues. Eram mulas, muito mais resistentes para cumprir a longa e difícil jornada através da Serra do Mar, partindo de Santos até São Paulo. Não estavam todos em trajes de gala. Não seria adequado, muito menos confortável, atravessar a densa mata atlântica trajados daquela maneira. Não foi a linda e idílica paisagem que os fizeram parar. Foi uma diarreia que obrigou o nosso futuro imperador a se aliviar às margens do rio Ipiranga. Muitos historiadores já apontaram as contradições presentes em Independência ou Morte!, tela pintada por Pedro Américo mais de sessenta anos depois da proclamação da independência do Brasil. Bem ao modo das pinturas históricas, não registra a realidade, mas a reconstrói de forma simbólica a fim de exaltar e tornar grandioso o evento protagonizado por D. Pedro I. Muito dessa alegoria e reconstrução está presente em Desdito, performance de Lais Myrrha, que dialoga com a pintura de Pedro Américo.

Ainda na calçada em frente ao edifício Louvre, ouvimos uma música vinda de dentro do prédio. Somos conduzidos por ela até o interior e nos depararmos com a formação inicial dos músicos-performers nas galerias comerciais do edifício. O que poderia parecer uma tentativa poética de apaziguamento do aspecto militar da pintura de Pedro Américo, não apenas reforça sua estrutura hierárquica, como também acentua algo de patético que permeia esse tipo de organização. Longe de inspirar respeito, provoca um certo constrangimento a atitude solene de seus participantes, tão artificial quanto o universo de faz de conta contemporâneo das redes sociais. A mesma pose forçada, aqui captada não por um pintor e seu cavalete, mas pelas lentes de câmeras fotográficas que, para além do registro dirigido por Pio Figueroa, participam da performance pontuando a cena ao som dos disparos luminosos de seus flashs, lembrando fogos de artifício tão comuns em grandes celebrações.

Lais Myrrha recria a cena retratada em Independência ou Morte! em frente ao 3º Tabelião de Notas de São Paulo. Não me parece aleatória essa escolha. Os cartórios, no Império, eram adquiridos por cessão da Coroa, que criava os cargos através das ordenações do Reino de Portugal no Brasil. Desde o início se instituiu a tradição da hereditariedade, em que a concessão era continuada ad eternum entre os membros de uma mesma família. Atualmente, a posse é por concurso, mas ainda assim cercada de interesses políticos, que influenciam na nomeação de novos titulares. Ao escolher seu Ipiranga às margens de um cartório, Lais elabora a primeira de suas alegorias, em um procedimento oposto ao ufanismo de Pedro Américo.

Os símbolos de nossa independência festejados na pintura serão postos em discussão por Lais. O Hino tampouco será poupado. A começar da escolha por uma fanfarra para a sua execução, que por conta de sua formação mais simples, menor que uma banda marcial, despe um pouco da majestade do hino. Com menos integrantes, a batida marcial característica dos hinos, que os conduz para frente com sua pulsação vibrante, reveste-se de melancolia e fragilidade. No arranjo de Henrique Mendonça, a marcação cadenciada da caixa parece nos remeter antes à dança lenta do célebre Bolero de Ravel, que a marcha de tropas militares em combate.

Partindo do interior do prédio, o trajeto estipulado para a performance também atua diretamente na execução da música. Funcionando quase como um arranjo fora do arranjo, o som produzido pela fanfarra se transforma conforme os espaços físicos percorridos por ela. O térreo com um pé direito alto, o piso de mármore, os tapetes, as escadas e seus corrimões de metal, as vitrines das lojas, em cada uma dessas superfícies o som rebate, provocando uma polifonia, adicionando novas camadas timbrísticas à massa sonora dos instrumentos. Retornando à calçada, os sons da avenida atravessam a fanfarra com os ruídos de buzinas de automóveis e ônibus, o batuque e o canto desordenado da roda de samba que acontece na praça em frente, os latidos dos cães de rua e as vozes dos pedestres curiosos com o acontecimento inusual. Seguindo em frente com a performance, os músicos descem ao estacionamento do prédio e seu espaço exíguo, com um pé direito muito baixo e paredes de concreto aparente, secam o som, deixando-o muito mais duro, fazendo com que se amplifique muito rapidamente, causando um certo desconforto à nossa audição.

Mas não apenas pelos aspectos físicos do som, o percurso traçado pela fanfarra altera nossa percepção em relação à música, ele também sugere outras imagens e significados. O edifício Louvre, para onde Desdito foi concebido, é um projeto de João Artacho Jurado. Sem formação acadêmica, praticava uma arquitetura de pouco rigor, carregada de elementos decorativos, transitando por muitos estilos, nunca hesitando em misturá-los em um mesmo projeto, desagradando seus contemporâneos modernos. É difícil não pensar nos caminhos opostos que ganharam as reputações de Artacho Jurado e de Pedro Américo. Se o autor do edifício Louvre conquistou um reconhecimento ainda que tardio, marcando para sempre a paisagem da cidade de São Paulo, o pintor de Independência ou Morte!, além de parecer se aprofundar em seu anacronismo, sua mais célebre e importante obra encontra-se longe dos olhares do público, trancafiada em um museu sob risco de desabamento.

Ampliando os significados, se quisermos atribuir aspectos fisionômicos ao arranjo, podemos notar em seus dois primeiros movimentos, Introdução – A Corte – Solene e Parte 1 – A Esperança – Altivo, algo do exagero decorativo presente no barroco-modernista de Jurado. Parecem conscientes de sua própria beleza, confiantes em seu andamento mais relaxado, sem pressa. No movimento seguinte, Parte 2 – O Império – Com Estranhamento (Ruído), os músicos avançam em direção a calçada em uma marcha um pouco mais acelerada, transformando o diálogo entre metais e percussões, alterando ritmo e melodia, atravessados por dissonâncias que parecem emular o movimento desordenado da avenida, que mimetizado pela fanfarra, invade o subsolo do edifício passando ao movimento seguinte: Parte 3 – O Golpe – Rude. O luxo de sua fachada e térreo ricamente ornamentados dá lugar ao ambiente lúgubre da garagem. A sensação de claustrofobia, comum a qualquer subsolo, aqui se amplia pela combinação entre o alto volume da música, a grande quantidade de pessoas disputando o pouco espaço com os carros estacionados e o odor úmido de mofo que entra pelo nariz, além do mau cheiro do lixo do prédio depositado no estacionamento. O público que acompanha a performance seguindo a fanfarra ao longo do trajeto parece agora participar de um cortejo fúnebre, o seu próprio cortejo. Citação ou não, é de se notar a grande semelhança entre a melodia que abre este movimento e o grito dado por Robert Plant no início de Immigrant Song, canção que faz parte do repertório de sua banda Led Zeppelin. Dada a semelhança, novas analogias podem ser construídas a partir da letra da canção que trata de um tema contemporâneo tão sensível quanto a imigração e que, entre outras coisas, alerta: “Então é melhor você parar e reconstruir suas ruínas, por paz e confiança pode-se ganhar o dia, apesar de todas suas perdas”.

Deixando a garagem para trás, seguimos de volta ao ponto inicial da performance. O último movimento do Hino Ainda Pendência, Parte 4 – A Farsa – Com Espanto, derrete o hino por completo, desfaz sua estrutura até o ponto de já quase não identificarmos sua conhecida melodia. Findo o trajeto, Lais Myrrha e seu Desdito parecem querer nos revelar o segredo por trás da pintura de Pedro Américo: a promessa de nosso eterno futuro sonhado e nunca alcançado por nós, transmutado agora pelo entorno de onde havíamos iniciado nossa caminhada. No arcaísmo persistente de uma instituição como o cartório, na decadência das poucas lojas físicas de agências de turismo que ainda resistem ao mundo digital e nas muitas vitrines vazias à espera de novos condôminos.

Uma de suas lojas ainda ocupada é uma revendedora de tinturas para cabelos. Enquanto eu seguia atrás da fanfarra, me lembro de olhar para a vitrine abarrotada de cima a baixo com caixas estampadas por falsas mulheres – de tão retocadas que eram suas fotografias – exibindo com alegria suas novas e coloridas madeixas e pensar na teimosia da vida. Não importa o tamanho da crise em que estejamos enfiados, essas caixas continuarão sorrindo pra gente. Penso agora no escracho, celebrado durante anos como uma das mais reconhecidas características de nosso povo, agora revisto junto a muitas outras revisões históricas de nosso tempo. Ainda assim, não pude deixar de cantar mesmo que baixinho, para mim mesmo, a paródia que nós alunos de escolas públicas nos anos 1970, obrigados pela ditadura militar a cantar todos os dias os hinos nacionais antes do início das aulas, fizemos do Hino da Independência: “Japonês tem quatro filhos, todos quatro aleijados, um é surdo, o outro é mudo e os outros dois, são barrigudos”. E sorri de volta para a morena da caixa, cor de cabelo marrom harmonia.

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Esse texto foi originalmente publicado no livro onde está pedro américo? (museu do louvre pau-brazyl, 2018) e revisado em junho de 2021.

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