o golpe das imagens

Eventos históricos problemáticos – como a primeira missa católica celebrada em terras depois chamadas de brasileiras ou o grito do imperador português de declaração de independência do Brasil de Portugal – nos ocorrem enquanto imagens a partir de representações pictóricas singulares formuladas muito tempo depois em acordo com esferas de poder que se perpetuam, ainda, no imaginário geral. No caso do quadro de Pedro Américo, Independência ou Morte!, trata-se de uma única imagem pintada mais de seis décadas após o acontecimento que busca elucidar e exposta até hoje em uma sala exclusivamente arquitetada para ela em um museu erguido na localidade do episódio. Muito planejamento, investimento e esforço para exaltar e solidificar uma única representação possível da história e guardá-la no tempo.

Durante a minha infância, transcorrida durante os anos 1990, a imagem da ditadura, por sua vez, era construída através das músicas de cantores e compositores que se opuseram a ela, além de alguns filmes que rememoravam especialmente a oposição e a censura. A imagem do golpe militar é a pior possível: tortura falsificada de suicídio em cárceres grotescos, restrições a peças de teatro, canções que se torciam para driblá-las. Ao mesmo tempo, revia-se a resistência, com imagens de praças públicas lotadas e de faixas de protesto conduzidas por jovens e artistas engajados.

O período de redemocratização no Brasil privilegiou, de certa maneira, imagens negativas do período ditatorial, contestadas explicitamente, naquele momento, apenas por alguns grupos extremistas. A Comissão da Verdade seria uma maneira de ampliar o acervo de imagens e histórias dos períodos de exceção, propondo solidificar através de uma política de Estado um processo incompleto de construção de uma narrativa oficial sobre as violências pretéritas. O relatório final da CV só seria apresentado em dezembro de 2014.

Antes disso, em junho de 2013, uma leva contraditória de protestos ocupou as ruas de algumas capitais e os noticiários brasileiros. Primeiro, ligados a movimentos por Passe Livre no transporte público – motivados pelo fato imediato de um aumento de vinte centavos na tarifa de São Paulo, maior cidade do país, àquela época governada por um prefeito petista, Fernando Haddad. Os espaços de contestação foram rapidamente apropriados por outras bandeiras, como a crítica à ineficiência dos serviços públicos, o combate à corrupção, a crítica à realização da Copa do Mundo no Brasil, o desejo de tirar o PT do poder, entre outras. O Movimento Passe Livre, pivô das denominadas “Jornadas de Junho”, que já protestava há anos com pouca reverberação midiática, desta vez viu as marchas ganharem proporções nacionais, se deslocando de seus objetivos iniciais e confundindo todos sobre suas articulações e consequências.

Em cerca de três anos de sucessivas manifestações e em clima de acirramento dos ânimos, que permanece, surgiram ícones emblemáticos de todos os lados, cores e figuras que materializam as disputas políticas formando uma estética complexa dos levantes, à direita e à esquerda. Coxinhas e mortadelas; antipetistas vestidos de verde e amarelo e petralhas vestidos de vermelho; o pato amarelo, o tchau querida e o pixuleco; o não vai ter golpe, o volta dilma e o fora temer: imagens sintéticas que unem em torno de si um complexo emaranhado de identificações coletivas, desejos e traumas canalizados em performances públicas.

Além disso, pela primeira vez na história do Brasil, um conflito social dessa envergadura foi transmitido e atualizado ao vivo em uma diversidade de plataformas de diferentes matizes e interesses e que se constituíram, em sua grande maioria, no decorrer da crise. Vários grupos virtuais se organizaram pautados no compartilhamento de narrativas textuais e visuais, aglutinando semelhantes em meio à pluralidade de posicionamentos. As imagens, as cores e os personagens do conflito (por vezes condensados em memes) circulam como mercadoria simbólica e, com autonomia, trazem adeptos para a disputa, ampliando e solidificando as distâncias entre os regimes de verdade dos espaços virtuais – que não deixam de ser reais por sua eficácia – formando as tais bolhas.

Há uma guerra civil entre imagens. Simultaneamente, há uma disputa de projetos de país e de classes sociais, mas cujo meio fundamental de produzir efeitos sobre a arena política é a apreensão, a edição e a circulação de imagens. Ou seja, as imagens não produzem os únicos sentidos dos conflitos – circulam também interesses pelo petróleo, entre outros embates da geopolítica internacional, e internamente, o controle de parte das elites sobre o processo de transformação social, em especial sobre as reformas de setores nevrálgicos, como a Previdência e as leis trabalhistas – todavia, as imagens não se constituem como meras metáforas do conflito político, mas são indissociáveis a ele, gerando consequências práticas e alterando os rumos da disputa.

Em 31 de agosto de 2016 o impeachment da presidenta Dilma foi consumado. Os conflitos e os paradoxos das ruas e das redes se resolveriam, supostamente, no Congresso, ancorado em pesquisas de popularidade partilhadas em manchetes de primeira página de sites de jornalismo e em brechas constitucionais. Pela primeira vez assistimos às imagens do golpe ao vivo.

Meses depois, nos dias que antecederam a primeira sessão na qual o ex-presidente Lula foi convocado a depor para o juiz Sergio Moro em Curitiba, em maio de 2017, os advogados do ex-presidente pediram para que houvesse duas câmeras na sala da audiência – uma no acusado (como já é de praxe em todos os tribunais da Lava Jato) e outra no acusador. O requerimento foi indeferido e, dias depois, assistiríamos ao vivo pelo canal do Judiciário, no youtube, Lula sendo interrogado. Veem-se em foco seus gestos, em meio às falas dos advogados que o rodeiam e ao juiz que não aparece no plano. Escuta-se a voz do acusador sem saber de onde nem como é emitida, como uma fala genérica e imparcial – não sabemos, por exemplo, se Moro lê as perguntas, se direciona o olhar ao interrogado, nem como reage às suas respostas. Nos centramos, todavia, na figura de Lula, como se estivéssemos analisando-o para a qualquer gesto ou hesitação nos indagarmos se ele estaria mentindo. A voz de fora traz informações e provas e ao acusado cabe a surpresa do que pode ser desvelado através de potenciais contradições em seus relatos. A tentativa – até hoje aparentemente mal sucedida – parece ser de, através dessa posição da câmera e dos longos interrogatórios, desconstruir a imagem de Lula.

Lula é um dos raros personagens do espectro político-partidário progressista brasileiro com um projeto político que passa por sua relação com as imagens. João Moreira Salles, em um texto sobre a declaração de Lula após a tentativa de condução coercitiva pela Polícia Federal (“Lula volta a Lula”, Blog da Piauí, em 09 de março de 2016), ainda anterior aos depoimentos que concedeu a Moro, analisa os mecanismos e a importância da construção da imagem para o ex-presidente, revelada explicitamente pela presença física constante de um fotógrafo contratado, o brasiliense Ricardo Stuckert, produzindo sua própria iconografia em oposição a forma como é retratado pela mídia tradicional.

Não apenas um líder por conta de sua agenda e histórico de ampliação expressiva de direitos sociais, Lula pode ser compreendido por sua força estética, um sujeito que compartilha dos gestos e desejos de uma parte considerável de brasileiros – inclusive de gente não necessariamente ligada à esquerda, mas que se alia eleitoralmente a Lula ou ao candidato que ele recomendar –, participando de comícios com muita consciência do impacto de sua presença, do conteúdo e da forma dos seus discursos. Os movimentos sociais de base no Brasil uniram-se nos últimos quase quarenta anos em torno da figura de Lula, e isto se perpetua e reinventa a partir da sua performance, reafirmada até hoje em eventos filmados ao vivo, fotografados e compartilhados à exaustão por diversos canais das mídias sociais (e claro, sendo editados e replicados por seus opositores). Lula parece um sujeito de outro tempo – faz política pela garganta, no corpo a corpo e sobre palanques e carros de som – mas compreende o efeito de sua imagem no tempo em que vive, estabelecendo-se como pauta constante no debate público.

Desde o governo Lula, em especial na última década, houve uma ampliação exponencial na quantidade de sujeitos com a prerrogativa de produzir e compartilhar suas opiniões e imagens na rede. Democratizou-se a possibilidade de divulgação de relatos pessoais, criando todo um potencial de aumentar as agências que registram e contam a História. No entanto, compreendemos pouco ainda as mediações e as desigualdades na reverberação desse volume imenso de informações e no acesso a ele. Mesmo com essa amplificação das vozes sociais não foi possível impedir o golpe ou, outra hipótese possível, fortaleceu-se ainda mais a sua concretização.

Há um deslocamento da energia social tanto das dinâmicas do Estado como das grandes empresas de comunicação, que têm menos controle sobre as informações. Essa pulverização não gerou, como já se esperou, a primavera de projetos democráticos e progressistas, mas ao contrário, ela é contemporânea à ascensão de movimentos políticos de extrema direita no Brasil e em outros países. Uma maior possibilidade de todos produzirem e compartilharem suas imagens, o que refletiria uma certa democratização da produção, da circulação e do consumo de notícias, foi concomitante à fase recente de maiores retrocessos no quadro democrático global.

Pode-se argumentar que parte significativa da disputa política brasileira ainda se dá a partir de algum furo de reportagem dos principais jornais do país ou de como é editado o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão. No entanto, mesmo ainda com tamanha força e importância da grande mídia, é cada vez mais constante e rápida a a desconstrução de suas narrativas. Muitas pesquisas acadêmicas, trabalhos de arte e posts compartilhados em redes sociais se debruçam sobre a parcialidade da mídia tradicional estudando sua escolha lexical, as narrações em off e a encenação tendenciosa. Toda a informação é construída e tem objetivos políticos. O que ainda não parece claro é como se opor aos levantes virtuais da direita contemporânea, compreendendo seus métodos e mecanismos em um regime de informação em que cerca de dois terços da população, em 2018 no Brasil, se comunica através de grupos de whatsapp e páginas de facebook.

É muito mais nebulosa e sofisticada a interferência sobre as informações e as imagens nos tempos da internet e dos celulares. O domínio sobre elas está cada vez menos submetido ao Estado e a outras instituições (como os museus) e mais a algoritmos formulados e administrados por novas consultorias privadas especializadas no estudo das informações que se propagam nas redes. A circulação de imagens obedece a uma lógica própria que deve ser apreendida através de seus efeitos sobre subjetividades e grupos sociais e de como ela é orquestrada por essas empresas de tecnologia da informação, que compram dados disponibilizados pelos usuários, vendem a empresas e a projetos políticos, que contratam serviços de interferência nesses fluxos virtuais através de fórmulas que vertem os espectadores para os regimes de verdade que se deseja patrocinar – lembrando que o Brasil é um dos países onde as redes sociais se generalizaram mais rapidamente. Sob o sonho do compartilhamento igualitário, o controle mudou de figura.

A aparente democratização e transparência da rede ajuda a impulsioná-la como mobilizadora de verdades convenientes aos grupos que pagam pelo deslocamento de usuários e das informações. Às vezes as coisas saem do controle, e algo viraliza, faz sucesso, sem que ninguém esperasse. No entanto, essas exceções contribuem ainda mais para criar a sensação de abertura das redes aos usuários, que depositam nela sem receio seus gestos e preferências, revelando intimidades e sendo conduzidos por esses algoritmos contratados sob a virtualidade da transparência e da igualdade das redes.

A produção de imagens e sua disputa são eixos fundamentais do conflito político brasileiro contemporâneo. Uma guerra de narrativas editadas ao vivo em um jogo de força desigual e estratégico, que no processo parece democrático e participativo, mas pelos efeitos mostra-se conduzido e até premeditado. As imagens do golpe parecem ter vida própria, mas são guiadas por forças mais difíceis de contestar. Os levantes de direita parecem ter se apropriado com melhor estratégia de tecnologias e possibilidades da internet, o que tem causado efeitos significativos sobre a macro política. Os algoritmos virtuais e seus programadores, agenciadores e financiadores produzem, a partir de conteúdo criado pelos usuários, certos limites aos modos de resistência nas redes, legitimados sob a promessa da democracia e da meritocracia das imagens.

Se no século 19, Pedro Américo, entre outros, pintaram imagens pontuais que forjaram a nossa identidade em acordo com as demandas oficiais, e no 20 as empresas de mídia – impressa, radiofônica e televisiva – assumiram o controle sobre as grandes narrativas visuais, mesmo que sempre com embates e desconstruções, nos primeiros anos do 21 vivemos entre o encanto e a desconfiança a respeito da proliferação dos fotógrafos e dos narradores da história. As crescentes distância e espessura entre as bolhas estão ligadas ao jogo de forças desigual no controle sobre o que é compartilhado na internet. O golpe na era das imagens foi também o golpe das próprias imagens, que hoje se revelam ainda mais interessadas. Parece urgente criar pautas que hackeiem a edição das imagens em tempo virtual, para se resistir na escala dos algoritmos.

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Esse texto foi originalmente publicado no livro onde está pedro américo? (museu do louvre pau-brazyl, 2018) e revisado em junho de 2021.

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