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A identidade será convulsiva, ou não será.

Max Ernst 1ERNST, Max. Escrituras. Trad. Pere Gimferrer e Alfred Sargatal. Barcelona: Polígrafa, 1982. p. 213.

A complexidade em torno das identidades, da formação, do sentido e dos dilemas do Brasil coloca essa sociedade sempre às voltas consigo mesma a fim de compreender sua imagem refletida nos espelhos sociais. Dentre muitos intérpretes brasileiros transparece a preocupação com as múltiplas influências que compõem a sociedade e a cultura brasileira em suas manifestações.

Dentro desse rol está o antropólogo Roberto DaMatta, que elabora o que pode ser a brasilidade por meio da análise dos ritos. O autor acredita que o papel dos rituais instaurados em sociedades industriais, individualistas e modernas seja o de

(…) promover a identidade social e construir seu caráter. É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se penetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de valores. Porque é o ritual que permite tomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte de seus ideais “eternos”. 2DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 29.

Nesse contexto, o ritual atua como um jogo de dramatizações que permite, por meio da representação, a construção da consciência do mundo social que nos circunda. O seu mecanismo principal é retirar aspectos, elementos, relações e indivíduos do âmbito da banalidade da vida rotineira e deslocá-los. Essa mudança de perspectiva provoca uma leitura alternativa do cotidiano, revelando um ponto de vista que antes não era percebido.

Em seu livro Carnavais, malandros e heróis, DaMatta descreve três formas ritualísticas-simbólicas que classifica como fundamentais para o entendimento da lógica interna do Brasil: o carnaval, a parada (militar, mais especificamente o Dia da Independência) e as procissões. Ele discorre sobre como esses três ritos se relacionam, especialmente o carnaval e a parada decorrente do Sete de Setembro, pela capacidade de unificar uma noção de Estado Brasileiro que abrange todo o território nacional. Além da integração espacial, essas duas formas de congraçamento afetam como os brasileiros se relacionam com o tempo por necessitarem de uma temporalidade específica, os feriados nacionais. 3Cf. “As datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio das datas oficiais selecionadas para festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo.” Em POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, no. 10, 1992, p.203. As procissões, por sua vez, estão ligadas a uma realidade específica de uma cidade, uma igreja, um santo.

Dragões da Independência

A comemoração ritual da Independência do Brasil em forma de desfile é uma festa da ordem organizada pelo Estado a fim de demarcar o rito de passagem histórico em que o Brasil se liberta da condição de colônia para uma Nação independente. Comemora-se repetidamente um fato dentro de uma História linear em que a Pátria é formada. O viés oficial guia a narrativa sobre o encadeamento da vida brasileira, reforçando as institucionalidades, as figuras e as estruturas de poder. Já o carnaval é o oposto disso, pois o “drama carnavalesco fundamental é o da dialética entre princípios de hierarquia e igualdade.” 4DA MATTA, Roberto. 1997, p. 146. Em sua estrutura de formação é possível observar que se trata do único ritual em que as camadas populares têm voz ativa. As escolas de samba, por exemplo, surgem dentro das comunidades, dos morros do Rio de Janeiro.

Entendido por DaMatta como um ritual de inversão, o carnaval tem potencial para a insubordinação, e por esse motivo goza de uma liberdade para questionar, perverter e colocar em perspectiva os tais Fatos Nacionais. Aspecto bem explorado pelas escolas de samba que, desde os anos 50, desfilam os sambas-enredo como conhecemos hoje abordando temáticas nacionais.

Enquanto isso, à parte desses “dois momentos sociais contrastantes – desses rituais simétricos e inversos no quadro da vida social brasileira, encontra-se a procissão.” 5Ibidem. Ritual que induz a evitação de qualquer questionamento dentro do terreno ambíguo em que convivem autoridades, santidades e o povo pecador de todas as classes sociais. Essa caminhada em conjunto tende a uma neutralização sistemática de categorias sociais, já que todos estão irmanados com o santo. Além de marcar uma nova relação com a rua em que o santo vai ao encontro do povo, deixando seu templo sagrado.

Apesar de instaurarem molduras diferentes na realidade, seja reafirmando as estruturas hierárquicas, invertendo os papéis sociais ou neutralizando as categorias, essas três formas de congraçamento – parada militar, carnaval e procissão – possibilitam um novo olhar para a rotina automática ao suspenderem o tempo e deslocarem o mundo cotidiano para o mundo ritual. Além disso – considerando o carnaval somente sob sua forma mundialmente famosa, os desfiles das escolas de samba – pode-se perceber semelhanças basilares entre os três ritos: todos organizam o corpo em fila e todos possuem uma estrutura de funcionamento que conta com um núcleo fixo de responsáveis que fazem esses rituais acontecer (Forças Armadas, Escola de Samba, Igreja) e uma massa flutuante de espectadores.

As escolas de samba existem desde o final da década de 1920. Elas são reconhecidas oficialmente pela prefeitura do Rio de Janeiro em 1935, após o primeiro campeonato de samba na Praça Onze organizado pelo periódico Mundo Sportivo em 1932. Desde sua estreia, a competição entre escolas ganha atenção midiática, e no ano seguinte os jornais Correio da Manhã e O Globo disputam o patrocínio do campeonato de samba e o último sai vencedor. Enquanto conquistavam os holofotes da imprensa e o espaço público dentro da cidade, 6Sobre a primeira competição organizada pelo Mundo Sportivo o jornal O Globo publicou sob a manchete Depois de amanhã, a praça Onze será theatro do Campeonato de Samba – Um espectaculo que promette uma imponencia excepcional: “(…)As escolas que se candidataram aos grandes premios são as melhores da cidade. O Rio verá, de facto, a massa encantadora dos morros descer para a praça Onze. O espectaculo não podia ser mais pittoresco e suggestivo. Cada “escola” apparecerá ao publico com um numero consideravel de figuras. São, pois, centenas de boccas cantando, com a maior emoção, as melodias mais graciosas da cidade. Independente das vozes e dos instrumentos sonoros, ha um sem numero de detalhes interessantes, inéditos e encantadores. Quando a primeira “escola” pisar o theatro da originalissima peleja, logo uma onda de melodia encherá a metropole. O samba dos morros nem sempre desce á cidade; ás vezes fica lá em cima, longe de qualquer possibilidade de ser transportado para o disco. Ha “malandros” que não admittem a victrola, porque têm a impressão de que, na chapa, o samba perde a sinceridade, a graça emotiva e dôce, o espírito delicioso.” (…) “Na praça Onze ouviremos sambas que nunca nos chegaram aos ouvidos e que têm, portanto, toda a formidavel seducção magica de uma primeira audição. Já falamos nos instrumentos prodigiosos que conseguem todos os effeitos, repercutindo profundamente a sua alma. Só a “cuica” encherá a praça Onze com o seu barbaro rumor que desenha as vozes profundas do samba, do espanto, da superstição.” Publicado no Jornal O Globo no dia 2 de fevereiro de 1932. as escolas se organizaram internamente e criaram um estatuto para estabelecer as normas dos desfiles e os elementos rituais que os caracterizariam, a exemplo da obrigatoriedade de um grupo de baianas, a proibição do uso de instrumentos de sopro e de enredos que não fossem baseados em temas nacionais. 7“Em 1938, o primeiro artigo do regulamento proposto pela UES dizia o seguinte: “de acordo com a música nacional, as escolas não poderão se apresentar no carnaval com histórias internacionais”. No ano seguinte, o artigo foi aplicado com rigor, levando à desclassificação da Vizinha Faladeira, que desfilou com o enredo “Branca de Neve e os Sete Anões”, baseado no filme de Walt Disney. Em: < http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/carnaval-poder-do-nacionalismo-na-era-vargas-ate-imperio-dos-bicheiros-20972662#ixzz59jjm9iYG> acesso em 14 de março de 2018. Essas normas, que são desenvolvidas ao longo do período nascente das agremiações, vão ao encontro do projeto político do momento. Trata-se da ditadura de Getúlio Vargas, que a partir de 1937 arquiteta uma forte imagem nacionalista que será projetada no exterior. 8“Contudo, a conjuntura da guerra, exacerbando os nacionalismos, funcionou também como catalisadora para a elevação do sambista ao lugar de representação nacional, um processo que, em 1941, viveu um momento marcante, com a transformação de Paulo da Portela em Zé Carioca por Walt Disney. Inspirar-se em Paulo da Portela para este propósito foi uma situação que, apesar de toda a sua legitimidade e comovente justiça, talvez com a rara exceção de Silva e Santos, tem sido tratada pela maioria dos estudiosos do samba como se fosse uma banalidade, quando, a nosso ver, se trata do episódio que mais publicamente evidenciou a transformação do sambista, pobre, preto, suburbano ou favelado, na imagem do “brasileiro” por excelência”. Em FERNANDES, Nelson da Nobrega. Escolas de Samba: Sujeitos Celebrantes e Objetos Celebrados. Rio de Janeiro: Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001, p. 106.

“Dentro do espírito da ‘política de boa vizinha’, quem chegou ao Rio de Janeiro em 1942 foi Orson Welles, segundo Cabral (1974: 116), para ‘fazer um filme de um milhão de dólares sobre o Carnaval carioca’. Com ele estavam 22 técnicos da RKO e grande quantidade de equipamentos, com os quais o cineasta filmou, entre outras coisas, os desfiles da praça Onze e um grupo de frevo no Tijuca Tênis Clube.” Em FERNANDES, Nelson da Nobrega. 2001, p. 121.
O samba, antes associado à criminalidade, aproveita esse terreno político favorável e adentra o imaginário burguês como “cultura brasileira”, e os desfiles das escolas de samba vão se fortalecendo como instituição-chefe do carnaval.

Ao longo das duas primeiras décadas dos desfiles, as escolas transformam em samba os heróis, o povo, a natureza, a História, e a Geografia do Brasil. A partir dos anos 1960, o desfile formaliza sua estética e passa a ser apresentado como o conhecemos hoje. Nesse momento surge a figura do carnavalesco que define o tema de abordagem do desfile do ano para que então um samba-enredo seja composto para contar essa narrativa.

Apesar de afirmar Fatos Nacionais, grandes conquistas e realizações, o samba-enredo não precisa se subordinar à narrativa dominante e oficial. O carnaval é um rito de inversão e por isso carrega um potencial altamente subversivo. Dessa maneira, é de se esperar que em momentos de atribulações social e política enredos não tão ufanistas e de exaltação pintem por aí.

Em 1964 os desfiles já eram televisionados 9“Em 1960 havia sido realizada a primeira transmissão do desfile das escolas de samba, em flash, pela TV Continental”. Em PRESTES FILHO, Luiz Carlos (coord.). Cadeia produtiva da economia do carnaval. Rio de Janeiro: E-papers, 2009, p.53. e possuíam alta adesão popular dentro do país. Essa manifestação cultural que outrora havia ajudado na sistematização de uma identidade nacional durante a ditadura do Estado Novo passa agora a ficar na mira da ditadura militar. Por meio de sua polícia política o regime rastreava as agremiações que eram a favor e contra o governo por ter consciência do poder exercido pelas escolas de samba como veículos de propagação de ideias.

Quando a liberdade é cerceada, respira-se pelas frestas.

A temática da liberdade é recorrente nas manifestações artísticas de um país como o Brasil em que parece que a opressão é a ordem. Durante o período da ditadura militar algumas escolas de samba ousaram tocar no assunto, sentindo o duro momento de restrição das opiniões e se valendo de um arcabouço referencial que data desde a subjugação do país à metrópole Portugal, a independência que manteve traços coloniais no Brasil autônomo e a escravidão mais longeva da História.

Em 1967 o enredo da G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro, elaborado por Fernando Pamplona, intitulado A História da Liberdade no Brasil, despertou a atenção dos militares e o carnavalesco teve que justificar a escolha do enredo que exaltava lutas populares. 10Cf. CRUZ, Tamara Paola dos Santos. As escolas de samba sob vigilância e censura na ditadura militar: memórias e esquecimentos. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010, p. 153. Esse foi o estopim para que os policiais do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) fossem presença constante nas reuniões do Salgueiro. Os militares desejavam ser incluídos no rol de revoluções que o samba-enredo listava ao discorrer sobre as formas de liberdade que foram sendo experimentadas no país – como a Independência, a Abolição da Escravatura e, finalmente, a Proclamação da República. Como isso não aconteceu, a escola sofreu represálias, como corte de luz e retirada da subvenção.

Outro enredo que desagradou aos militares foi Heróis da Liberdade do G.R.E.S. Império Serrano de 1969. O samba composto por Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira tinha versos provocativos: Ao longe soldados e tambores/ Alunos e professores/ Acompanhados de clarim/ Cantavam assim/ Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou/ Essa brisa que a juventude afaga/ Essa chama/ Que o ódio não apaga pelo universo/ É a revolução em sua legítima razão. O país já estava sob a vigência do AI-5 e os compositores precisaram dar explicações ao DOPS do porque a liberdade estava sendo cantada “em uma letra que mesclava o clima das passeatas estudantis que sacudiram o país em protesto contra o regime militar com o Hino da Independência.” 11Em: <http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/carnaval-poder-do-nacionalismo-na-era-vargas-ate-imperio-dos-bicheiros-20972662#ixzz59jlO7vHk>. acesso em 14 de março de 2018

Na Delegacia a explicação de Silas de Oliveira foi: “Eu não tenho culpa de retratar a História, não fui eu que a escrevi. Como eu fiz, o senhor poderia ter feito.” 12Depoimento de Almir Fernandes prestado ao autor em 15 de outubro de 1979. In: SILVA, Marília T Barbosa da & FILHO, Arthur L. de Oliveira. Silas de Oliveira: do jongo ao samba enredo. Rio de Janeiro: MEC/ FUNARTE, 1981. A escola teve o verso “é a revolução em sua legítima razão” censurado e teve que modificá-lo para “é a evolução em sua legítima razão”.

Desfile da Império Serrano, samba-enredo Heróis da Liberdade (1969)
Desfile da Império Serrano, samba-enredo Heróis da Liberdade (1969)

Ainda nessa esteira de enredos que abordam a liberdade da Nação, a abolição da escravatura e provocação do status quo durante o período ditatorial, destacam-se os sambas-enredo da Unidos da Vila Isabel de 1980, Sonho de um Sonho composto por Martinho da Vila, Rodolpho e Graúna com o versos: As mentes abertas/ Sem bicos calados/ Juventude alerta/ Os seres alados (…) Um sorriso sem fúria, entre o réu e o juiz/ A clemência, a ternura/ Por amor da clausura/ A prisão sem tortura. Em 1985, nos últimos suspiros da ditadura, ainda houve o E por falar em saudade da Caprichoso de Pilares com: (Quero votar!)/ Diretamente, o povo escolhia o presidente/ Se comia mais feijão/ Vovó botava a poupança no colchão/ Hoje está tudo mudado/ Tem muita gente no lugar errado.

Enredos com essa espessura crítica e clareza sobre os jogos de dominação político-social não apareceram mais entre o fim dos anos 90 e os anos 2000. Mais de trinta anos se passaram até que houvesse um enredo afiado como Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão? da Paraíso do Tuiuti em 2018. Trazendo de volta o horizonte político para a avenida, a escola desfilou a manutenção da escravidão 130 anos depois de assinada a Lei Áurea. A agremiação apresentou a herança escravista de exploração desde os trabalhos informais até a institucionalização da precariedade do trabalho através do desmanche das leis trabalhistas.

Tratando de pautas negligenciadas no ensino brasileiro e acobertados pela Grande Mídia do Brasil, como o trabalho escravo moderno rural e as manifestações manipuladas pela FIESP e pelo MBL a favor do impeachment e do “combate à corrupção”, a escola conseguiu infiltrar esses assuntos na Rede Globo. O desconcerto durante a transmissão televisiva realizada pela emissora era generalizado, mas foi especial no último carro alegórico: o neo-tumbeiro, que carregava o vampiro neoliberalista com a faixa presidencial. Foram mais de 30 segundos de silêncio dos comentaristas entre os minutos 37:42 e 38:25. 13Transmissão do desfiles que passou ao vivo na Rade Globo Em: <https://www.youtube.com/watch?v=RkVKiEzQMUw>. acesso em 20 de fevereiro de 2018. Situação quase impensável para um veículo de comunicação descendente do rádio em que a narração tem papel crucial.

Desfile da Paraíso do Tuiuti, samba-enredo Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão? (2018)
Desfile da Paraíso do Tuiuti, samba-enredo Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão? (2018)

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Ao evocar os três rituais propostos por DaMatta como um portal para mapear o funcionamento da sociedade brasileira, seus aspectos singulares e seus agentes, pode-se inferir que a performance Desdito de Lais Myrrha condensa intrinsecamente aspectos da procissão, da parada, e do desfile carnavalesco ao tratar de um tema fundador do país como unidade territorial que é a Independência.

A obra em questão tira o quadro Independência ou Morte! do monumento-sacralizado Museu do Ipiranga e do seu apagamento no próprio Louvre e produz um desfile de Pedro Américo pela comissão de frente da História da Arte Europeia do edifício, assim como pelas áreas internas do prédio, acompanhado pelo público. A procissão se cristaliza em dois momentos, no começo e no final, quando a formação do quadro é repetida nas escadarias do edifício com os músicos da fanfarra que ocupam o lugar da cavalaria e os figurantes que fazem o papel de D. Pedro I e sua comitiva.

Esse trabalho tem como ponto de partida o tema capital da parada, o Sete de Setembro (e sua representação imagética). Como na parada militar, os músicos da performance tocam instrumentos de sopro, e todos os componentes utilizam uniformes para fazer a distinção entre as categorias internas, para se diferenciar do público e marcar aspectos da mancha pictórica que aludissem às cores da certidão de nascimento visual da Nação; executam movimentos contidos e sincronizados formando um corpo neutro que executa o Hino da Independência, símbolo pátrio por excelência.

Por fim, utiliza o mecanismo de inversão presente no rito do carnaval em que um desfile pode contar Fatos Nacionais a partir de outras perspectivas que não as permitidas pelas autoridades. A arte compartilha aspectos com o carnaval por ambos serem territórios em que é possível colocar de ponta cabeça o mundo como conhecemos para elaborarmos outros sentidos e outros conceitos para ele. A performance realizada no museu do louvre pau-brazyl desdiz um marco da identidade brasileira ao desmanchar um de seus símbolos principais – o Hino da Independência. A repetição da formação do quadro Independência ou Morte! rebobina a História do Brasil e nos traz ecos de Millôr Fernandes: “No momento em que aumentam as nossas descobertas arqueológicas fica evidente que o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem”. 14FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. São Paulo: L&PM Editores, 1994, 3a. ed., p. 30.

Desfile da Paraíso do Tuiuti, samba-enredo Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão? (2018)
Desfile da Paraíso do Tuiuti, samba-enredo Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão? (2018)

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Esse texto foi originalmente publicado no livro onde está pedro américo? (museu do louvre pau-brazyl, 2018) e revisado em junho de 2021.

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  • 1
    ERNST, Max. Escrituras. Trad. Pere Gimferrer e Alfred Sargatal. Barcelona: Polígrafa, 1982. p. 213.
  • 2
    DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 29.
  • 3
    Cf. “As datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio das datas oficiais selecionadas para festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo.” Em POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, no. 10, 1992, p.203.
  • 4
    DA MATTA, Roberto. 1997, p. 146.
  • 5
    Ibidem.
  • 6
    Sobre a primeira competição organizada pelo Mundo Sportivo o jornal O Globo publicou sob a manchete Depois de amanhã, a praça Onze será theatro do Campeonato de Samba – Um espectaculo que promette uma imponencia excepcional: “(…)As escolas que se candidataram aos grandes premios são as melhores da cidade. O Rio verá, de facto, a massa encantadora dos morros descer para a praça Onze. O espectaculo não podia ser mais pittoresco e suggestivo. Cada “escola” apparecerá ao publico com um numero consideravel de figuras. São, pois, centenas de boccas cantando, com a maior emoção, as melodias mais graciosas da cidade. Independente das vozes e dos instrumentos sonoros, ha um sem numero de detalhes interessantes, inéditos e encantadores. Quando a primeira “escola” pisar o theatro da originalissima peleja, logo uma onda de melodia encherá a metropole. O samba dos morros nem sempre desce á cidade; ás vezes fica lá em cima, longe de qualquer possibilidade de ser transportado para o disco. Ha “malandros” que não admittem a victrola, porque têm a impressão de que, na chapa, o samba perde a sinceridade, a graça emotiva e dôce, o espírito delicioso.” (…) “Na praça Onze ouviremos sambas que nunca nos chegaram aos ouvidos e que têm, portanto, toda a formidavel seducção magica de uma primeira audição. Já falamos nos instrumentos prodigiosos que conseguem todos os effeitos, repercutindo profundamente a sua alma. Só a “cuica” encherá a praça Onze com o seu barbaro rumor que desenha as vozes profundas do samba, do espanto, da superstição.” Publicado no Jornal O Globo no dia 2 de fevereiro de 1932.
  • 7
    “Em 1938, o primeiro artigo do regulamento proposto pela UES dizia o seguinte: “de acordo com a música nacional, as escolas não poderão se apresentar no carnaval com histórias internacionais”. No ano seguinte, o artigo foi aplicado com rigor, levando à desclassificação da Vizinha Faladeira, que desfilou com o enredo “Branca de Neve e os Sete Anões”, baseado no filme de Walt Disney. Em: < http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/carnaval-poder-do-nacionalismo-na-era-vargas-ate-imperio-dos-bicheiros-20972662#ixzz59jjm9iYG> acesso em 14 de março de 2018.
  • 8
    “Contudo, a conjuntura da guerra, exacerbando os nacionalismos, funcionou também como catalisadora para a elevação do sambista ao lugar de representação nacional, um processo que, em 1941, viveu um momento marcante, com a transformação de Paulo da Portela em Zé Carioca por Walt Disney. Inspirar-se em Paulo da Portela para este propósito foi uma situação que, apesar de toda a sua legitimidade e comovente justiça, talvez com a rara exceção de Silva e Santos, tem sido tratada pela maioria dos estudiosos do samba como se fosse uma banalidade, quando, a nosso ver, se trata do episódio que mais publicamente evidenciou a transformação do sambista, pobre, preto, suburbano ou favelado, na imagem do “brasileiro” por excelência”. Em FERNANDES, Nelson da Nobrega. Escolas de Samba: Sujeitos Celebrantes e Objetos Celebrados. Rio de Janeiro: Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001, p. 106.

    “Dentro do espírito da ‘política de boa vizinha’, quem chegou ao Rio de Janeiro em 1942 foi Orson Welles, segundo Cabral (1974: 116), para ‘fazer um filme de um milhão de dólares sobre o Carnaval carioca’. Com ele estavam 22 técnicos da RKO e grande quantidade de equipamentos, com os quais o cineasta filmou, entre outras coisas, os desfiles da praça Onze e um grupo de frevo no Tijuca Tênis Clube.” Em FERNANDES, Nelson da Nobrega. 2001, p. 121.
  • 9
    “Em 1960 havia sido realizada a primeira transmissão do desfile das escolas de samba, em flash, pela TV Continental”. Em PRESTES FILHO, Luiz Carlos (coord.). Cadeia produtiva da economia do carnaval. Rio de Janeiro: E-papers, 2009, p.53.
  • 10
    Cf. CRUZ, Tamara Paola dos Santos. As escolas de samba sob vigilância e censura na ditadura militar: memórias e esquecimentos. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010, p. 153.
  • 11
  • 12
    Depoimento de Almir Fernandes prestado ao autor em 15 de outubro de 1979. In: SILVA, Marília T Barbosa da & FILHO, Arthur L. de Oliveira. Silas de Oliveira: do jongo ao samba enredo. Rio de Janeiro: MEC/ FUNARTE, 1981.
  • 13
    Transmissão do desfiles que passou ao vivo na Rade Globo Em: <https://www.youtube.com/watch?v=RkVKiEzQMUw>. acesso em 20 de fevereiro de 2018.
  • 14
    FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. São Paulo: L&PM Editores, 1994, 3a. ed., p. 30.

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