entre o dito e o não dito

Algumas pessoas se reuniam na calçada em frente ao icônico Condomínio Louvre, projetado por João Artacho Jurado (1907-1983) na década de 1950. Mas o movimento, ainda tímido, não chegava a chamar a atenção, nem se destacava em meio ao agitado centro de São Paulo num sábado à tarde. Na verdade, por fora tudo parecia normal. Mas bastava adentrar o hall do edifício, cuja fachada é ornada com indefectíveis pastilhas rosas e azuis, para perceber que algo de incomum estava por acontecer. Uma melodia familiar ecoava, transformando o que até então parecia com um encontro fortuito, numa audiência coesa. Apartado do espaço privado, protegido por um imponente gradil, o público ainda não podia entender, porém, quem é que executava a música. Era sem dúvida uma marcha marcial, que, normalmente, impõe por si só uma atitude de respeito solene. Não era o caso, mas uma pista do que estava para acontecer.

Foi inesperado notar como, conforme o som ia se amplificando, alguns dos participantes do happening começavam a acompanhar a melodia cantando baixinho, e de maneira quase que desapercebida. Apurando os ouvidos ficava fácil reconhecer o refrão que conclama a “brava gente brasileira” a “morrer pelo Brasil”. Tratava-se do Hino da Independência, o qual, solene, não dá opção aos brasileiros senão “deixar a pátria livre”.

Quando os portões finalmente se abriram, com o ambiente já tomado e construído pela música, a identificação da cena montada em torno da escada, nos fundos do hall, acabou por invadir a todos, e de imediato. Como se a memória, que vive às turras com a história, ganhasse nesse momento o papel primordial. Uma memória difusa de algo que se sabe de cor e, portanto, pouco merece reflexão: como o refrão de um hino que cantamos desde os tempos de escola.

Juntando dois mais dois, foi vindo à mente uma pintura que há tempo habita a lembrança nacional; aquela que retrata a Proclamação da Independência do Brasil, e que tem lugar cativo não só nos livros didáticos como no nosso imaginário visual coletivo. Não é preciso saber o nome do artista, o ano ou as condições de sua realização para reconhecer a imagem que se materializava de maneira figurada naquele momento.

Os músicos, no chão, em primeiro plano, faziam as vezes da Guarda de Honra. Posicionados em semicírculo, de costas para a audiência, mantinham os olhos voltados para o alto da escada, que neste caso substituía a colina do Ipiranga. Erguiam, ainda, seus instrumentos ao alto, como se fossem espadas, em um gesto de saudação ao grupo que lá se encontrava. Sobre os degraus, no centro da cena, era possível identificar um certo Pedro I, autor do famoso grito, com o trompete em riste, ladeado por sua comitiva. Esses, sem uniformes ou instrumentos, portavam cartolas e outros adereços que os distinguiam dos cidadãos comuns; nós, aqueles que observavam a cena. Na concepção de Lais Myrrha, artista que idealizou a performance, coube ao público lá presente o papel do povo que “assistiu a tudo bestializado”. 1Referência à famosa frase proferida por Aristides Lobo sobre o espanto do povo diante a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889. Cf: CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Aliás, a mesma atitude, e de forma coerente com uma situação que virou ícone e símbolo na pintura de Pedro Américo. O “povo”, representado na lateral esquerda da tela de Américo, não possui nenhum papel ativo na cena histórica, servindo, segundo palavras do próprio pintor, como “mero acessório” para “completar a harmonia linear da composição.” 2MELO, Pedro Américo de Figueiredo. “O Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil”. In: O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999. Na cena que ocorreu em 2017 o público virou coadjuvante; já na pintura de Pedro Américo, terminada em 1888, é o carreteiro que conduz os bois quem ocupa tal papel. Ele, como todos nós, a tudo observamos, mas sem nada entender.

O papel das Belas Artes na criação da identidade visual do Segundo Reinado

A pintura que representa o ato da Proclamação da Independência do Brasil por D. Pedro I às margens do rio Ipiranga em 7 de setembro de 1822 foi a última tela comissionada sob o regime imperial. Foi também a última pintura realizada por Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), um dos mais célebres pintores brasileiros do século XIX, na vigência do Império. Para não começar esta história pelo fim, vale a pena fazer um tão breve quanto necessário retrospecto.

Formado pela Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), instituição da qual mais tarde tornou-se professor, Pedro Américo foi ainda bastante jovem aperfeiçoar seu ofício junto a mestres europeus, tendo seus estudos no exterior bancado pelo “imperial bolsinho”, verba despendida particularmente por D. Pedro II. Junto de Victor Meirelles (1832-1903), Pedro Américo foi um dos grandes responsáveis pela construção de uma visualidade oficial para o Segundo Reinado brasileiro (1840-1889), como veremos.

A então denominada Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, que daria mais tarde lugar à AIBA, foi fundada em 12 de agosto de 1816 por decreto de D. João VI. É nesse ano que chega ao Brasil a colônia de artistas franceses, capitaneada por Joaquim Le Breton, que daria origem a um sistema formal de ensino das artes no país a partir de uma metodologia dita acadêmica ou neoclássica, e bem aos moldes europeus. 3É sabido, porém, que muito antes da chegada dos artistas franceses ao Brasil já haviam iniciativas de difusão da formação artística em voga no país, principalmente a partir de Salvador e do Rio de Janeiro, onde desenvolveu-se a chamada Escola Fluminense de pintura. Sobre isso ler, entre outros: MIGLIACCIO, Luciano. A arte do século XIX. Exposição Brasil 500 anos. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000. A também chamada “Missão Artística Francesa”, denominação atualmente rejeitada por induzir a uma compreensão equivocada da natureza desta iniciativa, foi composta por artistas como o paisagista e miniaturista Nicolas-Antoine Taunay, o pintor de gênero e história Jean-Baptiste Debret, o arquiteto Grandjean de Montigny, entre outros. 4Sobre os meandros da chegada e estabelecimento do conjunto de artistas franceses ao Brasil em 1816 e a rejeição do termo “Missão Artística” ver: SCHWARCZ, Lilia. O sol do Brasil. Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Se é verdade que o estabelecimento da colônia de artistas franceses na Corte brasileira ocorrida durante o reinado de D. João VI moldou a formação artística no país ao longo de todo o século XIX, é também importante notar que foi apenas com a chegada de D. Pedro II ao trono, em 1840, que a AIBA passou a cumprir um papel central na criação de uma visualidade nacional totalmente aliada e alinhada com a Coroa. O Imperador, que mantinha seu Diário à vista de todos, dizia sempre que terminada a construção da autonomia do país era preciso criar uma nacionalidade. Para tanto, investiu em escritores, cientistas e pintores que tratariam de desenhar uma certa identidade para este Império, cercado de repúblicas por todos os lados. Foi no Segundo Reinado, e contando com a participação ativa do monarca, que se passou a fomentar de maneira programática o desenvolvimento de instituições como a Academia de Belas Artes, o Colégio Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – centrais no processo de constituição da identidade nacional brasileira. 5Cf: SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Pedro II investiu recursos e atenção à pintura através do fomento ao sistema de mecenato estatal, principalmente a partir de 1855, quando Manoel Araújo Porto-Alegre (1806-1879) assumiu a diretoria da AIBA e implementou uma reforma em seu estatuto que colocou de forma definitiva a Academia à serviço do Império. 6Sobre a gestão de Manoel Araújo Porto-Alegre à frente da AIBA e a Reforma Pedreira ver: SQUEFF, Letícia. O Brasil nas letras de um pintor. Campinas: Editora Unicamp, 2004. Neste mesmo ano de 1855, o jovem Pedro Américo iniciava sua formação artística nesta instituição, recém-chegado da cidade de Areia, interior da província da Paraíba, sua cidade natal.

Em um primeiro momento, a iconografia do Império de Pedro II foi construída tendo como centro o fortalecimento da própria da figura do monarca, a partir da difusão de seus retratos, aliada a índices que destacavam as características da natureza tropical, que diferenciava o Brasil das cortes europeias, o afastava da antiga metrópole portuguesa e sobretudo das demais repúblicas latino-americanas que rodeavam o Império.

Nesta fase, portanto, abundavam representações que associavam D. Pedro II à natureza tropical, de um lado, e à universalidade de sua monarquia, de outro. Natureza, nesse momento, representava antes de mais nada “uma paisagem imaginativa”. Nela destacava-se a exuberante vegetação local, simbolizada principalmente por abacaxis e palmeiras, mas também a população nativa – ou seja, os indígenas idealizados, uma vez que a população escravizada precisava ser, sistematicamente, tornada invisível.

Esse era o “pacote imperial”, que destacava uma mesma paisagem tropical e elidia o que precisava esquecer ou até mesmo camuflar. Esse tipo de iconografia será dominante até 1864, quando tem início a Guerra do Paraguai, conflito que se arrastaria até 1870, e se demonstrou um definitivo divisor de águas na história do Império. Aliás, ele marca simultaneamente o auge e início do declínio do regime monárquico. 7Cf: SCHWARCZ, Lilia. As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

A Guerra foi muito mais demorada do que se imaginava, seus custos financeiros e humanos imensos, e com o decorrer do conflito a figura do Imperador foi perdendo a centralidade, passando a dividir a cena com heróis anônimos e outros nem tanto. É neste contexto que o grand genre da pintura de batalhas se desenvolve sobremaneira no Brasil, principalmente a partir dos pincéis de Pedro Américo e Victor Meirelles. Estes dois pintores protagonizaram, ainda que involuntariamente, a maior polêmica artística jamais conhecida no país durante a Exposição Nacional de Belas Artes de 1879. 8Cf: COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Senac, 2005. A exibição simultânea de dois dos maiores quadros pintados no Brasil, a saber, A Batalha do Avaí (1877), de Pedro Américo, e a Batalha dos Guararapes (1879), de Victor Meirelles, gerou uma verdadeira comoção na capital do Império. Nos meses que durou a exposição, a cobertura da imprensa da corte dedicou-se de forma quase exclusiva à defesa de um ou de outro pintor. Os partidários de um não poupavam tintas nos ataques proferidos ao outro. As belas artes viveram no ano de 1879 seu momento de maior prestígio na história do Brasil Império.

Independência ou Morte! Uma aposta na memória do Primeiro Reinado

Independência ou Morte!; O Brado do Ipiranga; O Grito do Ypiranga; Proclamação da Independência do Brasil. São variadas as denominações dadas a esta pintura que criou uma espécie de memória visual coletiva do momento em que o Brasil tornava-se uma nação independente de Portugal. Muito mais variada, porém, é a quantidade de suportes em que esta imagem foi e é ainda hoje reproduzida: cartões-postais, moedas, selos, louças, filmes, novelas, peças publicitárias, livros didáticos. Curiosamente, a tela original encontra-se chumbada na parede do Edifício-Monumento que abriga o Museu Paulista desde sua primeira exibição pública ao povo brasileiro, no dia da inauguração do Museu, em 7 de setembro de 1895. Desde então, nunca mais saiu de lá. Nem mesmo agora, quando o prédio se encontra interditado para uma reforma estrutural que exigiu que o mesmo fosse quase que inteiramente esvaziado. 9Referimo-nos ao fechamento do acesso ao público, feito de forma repentina, em agosto de 2013, para realização de reformas nas fundações e estruturas do Edifício-Monumento, que ainda hoje se encontra sem previsão oficial de reabertura. Estão inexoravelmente unidos, Edifício-Monumento e pintura, desde sua gênese.

Salão Nobre do Museu Paulista. Fotógrafo: Helio Tegnon. Acervo do Museu Paulista.

Ao contrário do que se pode imaginar, Pedro Américo não recebeu a encomenda para a feitura do quadro. O pintor teve que insistir junto à Comissão responsável pela construção do Edifício para que sua proposta de realizar a pintura idealizada para ornar o Salão de Honra do Monumento fosse aceita. Estávamos já em 1885, e a crise política que rondava o Império respingava forte na popularidade do pintor, tão intimamente ligado ao Soberano. Américo sustentou sua defesa no fato de que o arquiteto contratado para projetar a construção, o italiano Tommaso Bezzi (1844-1915), era estrangeiro, e não seria correto delegar a principal imortalização do gesto fundador da nação exclusivamente a um não brasileiro. Tal estratégia mostrou-se efetiva junto à imprensa paulistana; contando com o apoio dos articulistas e, a seguir, da população. Américo foi chamado à São Paulo em janeiro de 1886 para assinar o contrato que lhe garantiria o pagamento de 30 contos de réis pela execução do quadro histórico que deveria ser entregue em até três anos. 10O trâmite que envolveu a negociação entre o pintor e a Comissão do Monumento do Ipiranga está detalhadamente documentado em: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. “Nos bastidores da cena”. In: O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999. Logo na sequência, o pintor seguiu para Florença, onde sua família residia e ele passava a maior parte do tempo. Seu objetivo era pintar na terra dos grandes mestres a obra que enalteceria o nascimento da jovem nação tropical.

Foi também em Florença, nos salões da Real Academia de Belas Artes, que Pedro Américo realizou a inauguração solene da pintura, no dia 8 de abril de 1888. Além da presença do Imperador Pedro II e sua família, o pintor e sua obra receberam na ocasião a visita de diversas outras figuras monárquicas, entre as quais a Rainha da Sérvia, a Rainha da Inglaterra e a Imperatriz das Índias. Valendo-se de uma estratégia pouco usual, Pedro Américo preparou um libreto para ser distribuído no momento de apresentação do quadro. O texto assinado e datado 1 de abril de 1888 vinha dividido em duas seções: O Fato, onde o artista discorre sobre o feito histórico de 7 de setembro de 1822, recorrendo a fontes variadas para reconstituir o acontecimento protagonizado por D. Pedro I; e A Pintura, quando realiza uma interessante defesa do ofício do artista, diferenciando-lhe do ofício do historiador.

Pedro Américo, O brado do Ypiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil. Libreto, 1888. Acervo do Museu Paulista.

Poucos sabem hoje, porque história e memória não são feitas da mesma matéria, que foi o próprio pintor a partir desta publicação quem lançou luzes às famosas controvérsias que cercam a cena tal qual pintada por Américo. O artista registrou em seu libreto que D. Pedro I montava, na famosa ocasião, um “asno baio, ou uma besta gateada” e não um cavalo portentoso. O pintor referiu-se também ao “desarranjo gástrico” que acometera o Príncipe Regente naquela viagem. Além do mais, destacou que a Guarda de Honra, dado o motivo pouco oficial da viagem, estaria trajando o “pequeno uniforme”, e não o traje completo. E ao afirmar e dar divulgação a esses dados que até hoje são repetidos como chistes de falseamento quando nos referimos à tela, Américo vaticina que ao artista valem mais “as exigências da estética do que as incertezas da tradição”, uma vez que “a realidade inspira e não escraviza o pintor”. 11MELO, Pedro Américo de Figueiredo. “O Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil”. In: O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999.

Longe do que se imagina, Américo não tinha uma posição naive diante da cena. A obra era uma encomenda que deveria enaltecer o Império, a partir do resgate da memória do principal ato pátrio realizado em solo paulista. Por isso mesmo, explicitou ele no libreto, se tais ocorrências eram dignas do registro histórico, eram, porém, “imerecedoras da contemplação dos pósteros”. Para ele, ao artista cabe ser fiel apenas “à ciência do belo” 12Idem, Ibidem. e a nada mais. 13Para outras leituras e interpretações sobre essa tela ver, entre outros: AVOLESE, Claudia Valladão de Mattos. “Independência ou Morte”, de Pedro Américo: entre a materialidade da obra e a imagem em construção”. In: PICOLLI, Valéria e PITTA, Fernanda (orgs). Coleções em diálogo: Museu Paulista e Pinacoteca de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2016.

Intempéries temporais

No breve intervalo de tempo que separou a primeira exposição da tela, reservada a famílias reais do Velho Continente, em abril de 1888, e sua chegada ao Brasil, em julho do mesmo ano, D. Pedro II realizou sua mais ousada manobra na tentativa de garantir o Terceiro Reinado dos Bragança. A 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinava a lei Áurea, pela qual se declarava, em artigo único, extinta a escravidão no Brasil. A Revista Ilustrada, dirigida pelo agitador abolicionista e republicano Ângelo Agostini, afirmava que agora, pela primeira vez, a Independência do Brasil deveria ser sinceramente comemorada. A mesma publicação, baseada no Rio de Janeiro, lamentava, porém, que Américo tivesse despachado sua tela diretamente para São Paulo, sem fazer antes uma exposição do quadro na capital da corte. Talvez cioso de cumprir rigorosamente com seus prazos, evitando assim qualquer argumento que dificultasse sua recompensa financeira, o pintor, de forma inédita, deixou de exibir sua obra ao grande público logo que desembarcada da Europa; desta vez preferiu entregá-la diretamente a quem era de direito; ou seja, àqueles que a haviam comissionado.

O artista não podia prever que depois de corretamente oferecida ao destino, a grande caixa que acondicionava a tela e sua moldura ficaria refém de uma série de circunstâncias adversas. O Edifício-Monumento comemorativo da Independência sofreu com a falta de recursos e de vontade política que se sucederam ao Golpe Republicano liderado por Deodoro da Fonseca em 15 de novembro de 1889. Frente ao novo regime político, o Monumento em homenagem a um feito fundador do Império – e da nação – precisava ser ressignificado. Dessa forma, mesmo tendo suas obras concluídas em 1890, o Museu Paulista, localizado no alto da colina do Ipiranga, só foi inaugurado cinco anos depois. 14Vale lembrar que o Edifício-monumento não foi projetado por Tommaso Bezzi para ser um Museu. A apropriação do prédio para virar “Museu Paulista” aconteceu somente no período republicano. OLIVEIRA, Cecília Helena de. Op. cit. 1999. Foi só então que a tela de Américo, concluída e entregue em 1888, pode ser finalmente admirada pelos brasileiros: em 7 de setembro de 1895. Nessa época, no entanto, já havia uma lacuna de tempo e temática, o que fez com que se esfriassem os ânimos e a atenção da audiência. A grande e pretensiosa pintura de Pedro Américo acabou merecendo, nesta ocasião, poucos e desanimados comentários.

Pedro Américo morreria não muitos anos depois em Florença, para onde se retirou em um quase auto-exílio, quando do retorno forçado da família real à Portugal pós 15 de novembro de 1889. O artista não viu e nunca poderia imaginar a proporção que sua pintura ganharia na formação do imaginário nacional. Pois foi Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), diretor do Museu Paulista no ano das comemorações do Centenário da Independência, em 1922, quem transformou Independência ou Morte! em um documento histórico a ser lido como representação verossímil do surgimento de um Brasil independente. Afonso Taunay, historiador renomado na primeira metade do século XX, e conhecido por ser prolífico e bastante assertivo, retirou da tela de Américo sua ligação com o Império, asseverada pelo próprio pintor na ocasião de sua inauguração, dando-lhe o status de testemunho histórico (e quase republicano, porque cidadão). 15Sobre o projeto de Afonso Taunay para as comemorações do Centenário da Independência de 1922 e a ressignificação da pintura de Pedro Américo a partir do Museu Paulista ver: LIMA JUNIOR, Carlos Rogério. Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, O Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional. IEB/USP, 2015 (dissertação de mestrado). O projeto teve sucesso e até hoje a obra é insistentemente reproduzida e muitas vezes recebida acriticamente pelo público.

Pedro Américo, Estudos para Independência ou Morte!. Acervo do Museu Paulista.

Entre o dito e o não dito: Pedro Américo adentra o Louvre

Hora de voltar ao século XXI e à abertura deste texto. No edifício recheado de citações que, ao menos pretensamente, fazem referência ao maior conjunto artístico do mundo, 16Cf: GIUFRIDA, Guilherme. VARRICHIO, Jéssica (orgs). a autobiografia da monalisa. São Paulo: museu do louvre pau-brazyl, 2016. o museu do louvre pau-brazyl lançou luzes a um combalido Pedro Américo. Ao propor uma reflexão sobre o apagamento do artista no tempo-espaço que separa a confecção das plantas do projetista à execução final da obra, a curadoria convidou a artista Lais Myrrha para realizar a ação artística a que nos referíamos no princípio deste ensaio.

As relações e tensões entre história e memória, monumento e fotografia, lembranças e esquecimentos compõem o repertório da artista Lais Myrrha, tão denso quanto diverso. O tempo, imanente e inexorável, entendido em todas suas variáveis, é a matéria essencial com a qual a artista se debate. No conjunto da sua obra, a História positiva, representada aqui pela pintura acadêmica de Pedro Américo, é contraposta pelo instante fugidio da fotografia, que democratiza a memória, neste caso, quando fixada na parede do hall de passagem pública – ato derradeiro da ação.

A narrativa fundacional da nação, que tem no gesto de D. Pedro I e na forma como foi registrado pelos pincéis de Américo sua melhor representação, porque já alcançou o estatuto de clichê, foi primeiro lembrada para então ser desconstruída. 17O artista Bruno Moreschi (1982-) tem desenvolvido releituras individuais e coletivas a partir desta pintura de Pedro Américo que, justapostas à performance de Myrrha, renderiam uma interessante reflexão. Destacamos os trabalhos presentes no projeto “O Museu está fechado para obras”, que reúne uma série de experiências artísticas a partir do distanciamento imposto entre público e obra desde o fechamento do Museu Paulista ocorrido em 2013. Assistimos naquela tarde à “Ainda Pendência” não só de nossa realização enquanto nação, mas também de uma arte que busca a rememoração do tempo não vivido, mas para sempre almejado. Engraçado pensar que, por vias tortas, Pedro Américo foi levado ao Louvre pelo instante do acontecimento que nunca pretendeu retratar. É como se a tela permanecesse presa a uma postura verista que jamais quis representar. Foi assim em 1888, quando a pintura virou imperial demais para ser apresentada num contexto republicano, foi também assim em 2017 quando a performance questionou menos o ato político em si do que sua representação monumentalizada.

A pintura nasceu para mentir, e assim dizer a verdade, e esse era o projeto acadêmico defendido pelos pintores da Escola de Belas Artes. A tela de Américo, por isso mesmo, podia ser realista nos detalhes, mas não no conjunto da fatura. Ela é um documento da história oficial, memória coletiva construída de maneira deliberada – ainda que não fosse essa a intenção do pintor. Em um processo que foca ausências, desmanches, desmantelamentos físicos e sonoros, Myrrha produziu a partir da obra de Américo o seu anti-monumento. 18Cf: MYRRHA, Lais. Sobre as possibilidades da impermanência: fotografia e monumento. EBA/UFMG, 2007 (Dissertação de mestrado). Nele, é o silêncio que grita. Entre o dito e o não dito da História, é o Brado não soado pelo trompete de um improvável D. Pedro I que ecoa na memória daquela tarde de 18 de novembro de 2017.

Estranho é o destino desta pintura que nasceu para exaltar (e assim esconder) e viveu para ser fotografia, o que jamais foi ou pretendeu ser.

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Esse texto foi originalmente publicado no livro onde está pedro américo? (museu do louvre pau-brazyl, 2018) e revisado em junho de 2021.

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  • 1
    Referência à famosa frase proferida por Aristides Lobo sobre o espanto do povo diante a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889. Cf: CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • 2
    MELO, Pedro Américo de Figueiredo. “O Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil”. In: O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999.
  • 3
    É sabido, porém, que muito antes da chegada dos artistas franceses ao Brasil já haviam iniciativas de difusão da formação artística em voga no país, principalmente a partir de Salvador e do Rio de Janeiro, onde desenvolveu-se a chamada Escola Fluminense de pintura. Sobre isso ler, entre outros: MIGLIACCIO, Luciano. A arte do século XIX. Exposição Brasil 500 anos. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000.
  • 4
    Sobre os meandros da chegada e estabelecimento do conjunto de artistas franceses ao Brasil em 1816 e a rejeição do termo “Missão Artística” ver: SCHWARCZ, Lilia. O sol do Brasil. Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • 5
    Cf: SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • 6
    Sobre a gestão de Manoel Araújo Porto-Alegre à frente da AIBA e a Reforma Pedreira ver: SQUEFF, Letícia. O Brasil nas letras de um pintor. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
  • 7
    Cf: SCHWARCZ, Lilia. As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • 8
    Cf: COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Senac, 2005.
  • 9
    Referimo-nos ao fechamento do acesso ao público, feito de forma repentina, em agosto de 2013, para realização de reformas nas fundações e estruturas do Edifício-Monumento, que ainda hoje se encontra sem previsão oficial de reabertura.
  • 10
    O trâmite que envolveu a negociação entre o pintor e a Comissão do Monumento do Ipiranga está detalhadamente documentado em: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. “Nos bastidores da cena”. In: O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999.
  • 11
    MELO, Pedro Américo de Figueiredo. “O Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil”. In: O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999.
  • 12
    Idem, Ibidem.
  • 13
    Para outras leituras e interpretações sobre essa tela ver, entre outros: AVOLESE, Claudia Valladão de Mattos. “Independência ou Morte”, de Pedro Américo: entre a materialidade da obra e a imagem em construção”. In: PICOLLI, Valéria e PITTA, Fernanda (orgs). Coleções em diálogo: Museu Paulista e Pinacoteca de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2016.
  • 14
    Vale lembrar que o Edifício-monumento não foi projetado por Tommaso Bezzi para ser um Museu. A apropriação do prédio para virar “Museu Paulista” aconteceu somente no período republicano. OLIVEIRA, Cecília Helena de. Op. cit. 1999.
  • 15
    Sobre o projeto de Afonso Taunay para as comemorações do Centenário da Independência de 1922 e a ressignificação da pintura de Pedro Américo a partir do Museu Paulista ver: LIMA JUNIOR, Carlos Rogério. Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, O Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional. IEB/USP, 2015 (dissertação de mestrado).
  • 16
    Cf: GIUFRIDA, Guilherme. VARRICHIO, Jéssica (orgs). a autobiografia da monalisa. São Paulo: museu do louvre pau-brazyl, 2016.
  • 17
    O artista Bruno Moreschi (1982-) tem desenvolvido releituras individuais e coletivas a partir desta pintura de Pedro Américo que, justapostas à performance de Myrrha, renderiam uma interessante reflexão. Destacamos os trabalhos presentes no projeto “O Museu está fechado para obras”, que reúne uma série de experiências artísticas a partir do distanciamento imposto entre público e obra desde o fechamento do Museu Paulista ocorrido em 2013.
  • 18
    Cf: MYRRHA, Lais. Sobre as possibilidades da impermanência: fotografia e monumento. EBA/UFMG, 2007 (Dissertação de mestrado).

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