a presença (?) negra em Independência ou Morte!

Durante boa parte do século XIX uma das grandes questões nacionais debatidas pela intelligentsia brasileira foi os lugares que a população negra (não) deveria ocupar quando eventualmente a escravidão, “o mal necessário”, findasse. 1Vide: AZEVEDO, Celia Marinho. Onda Negra, Medo Branco: o medo no imaginário das elites, século XIX. São Paulo, Companhia das letras, 1987.Discutiram-se maneiras de realizar uma “transição” discreta e encabeçada pelas elites. Ceder os anéis e manter os dedos. Conjecturava-se um fortuito mundo pós-escravista no qual essas personagens passariam de objeto a sujeito, de propriedade a cidadãos. Uma situação que colocava em xeque o domínio senhorial: afinal como garantir a heteronomia dos ex-escravos? Como mantê-los dependentes nesse novo regime? É uma história de longue durée, com mais clivagens e pontos de inflexão do que a classe senhorial admitia, e que culminou com a abolição da escravatura em 1888, justamente o mesmo ano em que Pedro Américo, então em Florença, finalizou Independência ou Morte!. A tela era de uma encomenda do governo Imperial. Mas por que recuperar esse episódio nesse contexto?

As pinturas são antes sujeito do que objeto, nascem de uma conjunção de ideias que se precipitam na forma plástica; estão ali as famigeradas intenções do artista negociadas com a sociedade (seja aquele que encomenda, os críticos ou o público em geral), o diálogo com a tradição (como continuidade, superação ou rejeição) mas também as tópicas que escapam ao que é conscientemente projetado. As questões que se colocam às obras, invariavelmente, dizem respeito as demandas de seu tempo. Chronos (grego Χρόνος, tempo) implacavelmente desautoriza o estreito arranjo ritual concebido para elas; 2Na filosofia pré-socrática Chronos é a personificação do tempo e da imortalidade. Durante a renascença passou a ser associado mais frequentemente ao Titan Cronos, o Deus do tempo por excelência. Cf. LIDDELL, Henry George & SCOTT, Robert, A Greek-English Lexicon. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/ passagens antes prosaicas tornam-se centrais, novos pleitos despontam e o que era essencial perde o viço. Analisar uma obra de arte, portanto, pode ser mais do que recobrar os intentos originários daquele que leva (nesse caso) o pincel à mão, mas antes espiar para o que crescia a seu redor.

Independência ou Morte! foi pintada numa tradição muito específica: a das pinturas de história. Esse gênero encontra seu ápice, muito provavelmente, em Jacques Louis David, na França napoleônica. Com a consolidação das academias de arte, esse gênero converteu-se na “grande arte”; as telas possuíam dimensões físicas consideráveis, englobavam a retratística, paisagem, nu, natureza-morta, etc. Todos postos a serviço de uma narrativa histórica. As situações podiam ser ficcionais ou míticas, apresentar um evento histórico, dissertar sobre a formação dos estados nacionais, revoluções, batalhas, etc. No Brasil, a prática muda de status a partir de Pedro Américo e Victor Meirelles. Suas pinturas de batalha, por exemplo, possuem forte comunicação com o presente. 3Já na Europa, no mesmo período, o momento era diverso, a prática tão comum no século anterior fora solapada pelos ventos das vanguardas modernas. Ver COLI, Jorge. O sentido da Batalha do Avahí, de Pedro Américo. Projeto História, no.24, São Paulo, junho de 2002, pp.113-127. É o caso, por exemplo, de Batalha do Avaí (1879). Essa equação era, de certa maneira, inescapável; contudo, as relações que se estabelecem entre a pintura de uma batalha que acontecera apenas dois anos antes parecem mais imediatas e inteligíveis do que em Independência ou Morte!. Esbocemos uma análise.

O quadro do Museu do Ipiranga apresenta intensa movimentação. Ao centro os protagonistas, D. Pedro I, e um grupo de seguidores, que se encontram numa parte mais elevada do terreno. A pintura esclarece um acontecimento salutar para história pátria, tornamo-nos testemunhas oculares do exato instante em que se proclamara a independência do país. A pose do monarca é heroica, soergue a espada em direção aos céus. É altivo e diplomático na mesma medida. Monta seu alazão – único animal em repouso – com correção. Brada aos quatro ventos a insubmissão do Brasil à Coroa Portuguesa. Seus acompanhantes, ligeiramente mais agitados, o saúdam com lenços e chapéus. As ações desse primeiro grupo reverberam e entusiasmam a cavalaria. Duas fileiras de soldados vigorosamente mimetizam o gesto do agora Imperador. Um deles esforça-se para não adentrar ao rio Ipiranga, cuja margem limita nosso campo visual. Estamos em algum ponto do rio, temos uma visão privilegiada do ocorrido. À esquerda avista-se uma figura magra e esguia: um atônito boiadeiro em farrapos. Não há personalidade, sua face é convenientemente encoberta pela sombra de seu chapéu. Mais acima, outro homem, em vestes visivelmente mais dispendiosas, observa com serenidade. Prende o chapéu com as mãos, sinal de respeito e atenção. Novamente a postura corpórea do quadrúpede acorda o estado emocional do cavaleiro. Podemos pensá-lo como membro da classe senhorial, que àquela altura vivia às turras com o governo, justamente pela maneira como se conduziu a abolição, isto é, sem o pagamento de indenização aos senhores em função da perda de suas então propriedades. Dessa maneira, a tela reaveria, por um lado, a importância do exército enquanto ator para a soberania nacional e também o grande acordo que as elites firmaram entre si tendo a figura de D. Pedro I como um ícone que capitalizasse as emergências fundantes desse país que nascia.

Mas e os negros? Onde se encontram nessa tela? Afinal compunham, àquela altura, uma porcentagem significativa da população. Como era possível excluí-los daquele processo? O silêncio, em determinadas situações, pode ser mais revelador do que imaginamos num primeiro momento. Como podemos notar, a presença negra na tela é perfeitamente residual. Não há um sequer entre os militares, tampouco dentre os passantes mais próximos; tão somente acompanhamos a emergência de uma personagem negra num transeunte, localizado na porção esquerda da tela, ao fundo, acompanhando um burro de carga. A personagem está completamente alheia à situação. Não é sequer espectadora. Ocupada que está em seu ofício não passa de um coadjuvante. Como explicar essa situação?

A maioria das representações de pessoas negras que temos na arte brasileira durante todo o século XIX são resultado de esforços empreendidos por pintores estrangeiros. Suas motivações são variadas: há aqueles que dialogam com um abolicionismo internacional como Rugendas, outros buscam entender a vida cotidiana e pitoresca nos trópicos, como Debret e Hildebrandt. Presença contínua em livros didáticos por gerações, Debret e Rugendas não só são os mais conhecidos do grande público como ajudaram formatar nosso imaginário sobre o período escravista. Pensemos, por exemplo, em Punição pública dos escravos, uma das várias aquarelas que Debret produziu para o seu Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834-1839). O corpo negro, como podemos observar, está exposto por toda a imagem. Os demais cativos assistem apreensivos e o ritual cumpre sua função pedagógica. O drama se desenrola em três tempos. Um escravo é levado ao castigo. Sua reação mecânica é relutar, ainda que em vão. É arrastado por um agente do Estado e por outro escravo; esse último cabisbaixo. Têm as mãos e os pés atados. No centro outro cativo é castigado. Seminu, é chicoteado com veemência. Seu olhar não fixa em nenhum ponto concreto, sua expressão facial anuncia uma profunda dor. Um terceiro cativo ainda, que já passou pelo castigo, contorce-se. Tem dificuldades para se levantar. É auxiliado por outro que fita assustado e atento às reações de seu senhor. Age sob suas ordens. Seu corpo é extensão do desejo senhorial.

Jean Baptiste Debret, Punição pública dos escravos (Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834-1839)

É possível enxergar semelhanças entre essa cena que acabo de descrever e Vista da Ilha de Itamaracá (1637), de Frans Post – provavelmente a pintura mais antiga das Américas feita por um artista profissional. Em ambas situações os corpos negros são disponíveis. A linha do horizonte a perder de vista. Dois terços de céu. O sinuoso relevo da Ilha de Itamaracá confere ritmo à paisagem. No primeiro plano, quatro homens assumem o centro da cena. Dois deles são brancos. Exibem elegantes vestes; botas, camisa e calça de nobre tecido, um airoso colete e chapéu. O primeiro está de costas para nós. Sua corpulência indica distinção. Contempla a vista com entusiasmo, como sugere ao apontar em sua direção. Já o segundo ignora o tema principal da tela. Seu olhar e posição corporal sugerem que supervisiona o trabalho dos homens negros. Observa-os do alto de seu cavalo. Estes, por seu turno, trajam indumentos ordinários, prezam pela economia. Exibem seus torsos nus, arduamente forjados pelo esforço físico que exige o trabalho braçal. O que está à direita alimenta o cavalo de seu senhor. Os pés descalços terminam de esclarecer sua condição. O que vai à esquerda traz uma saca à cabeça, equilibra-se com muito esforço e retidão. A esses não é consentido contemplação. Nos dois casos, embora distantes no espaço e no tempo, prevalece um olhar atento à presença escrava. Isso é sintomático dessa sociedade. Raramente negros são personagens nas pinturas feitas por artistas nacionais.

Frans Post, Vista da Ilha de Itamaracá (1637)

Temos duas outras pinturas que falam sobre a abolição. A primeira delas é de Miguel Navarro y Cañizares. O pintor espanhol radicado em Salvador pintou Lei áurea (1888) em que racionaliza, através de uma estrutu­ra triangular, o peso de cada um dos atores que cobram os louros por seu suposto envolvimento nesse evento. 4Sobre esse pintor. Cf. RUMMLER DA SILVA, Viviane. Miguel Navarro y Cañizares e a Academia de Belas Artes da Bahia: relações históricas e obras. REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA. Ano 2, nº 2, outubro 2005. Disponível em http://www.revistaohun.ufba.br/, acessado em 13 de junho de 2013. Parlamentares e militares, cada grupo ocupa um dos lados do quadro. Ao centro, elevada por um altar, a princesa redentora apega-se a uma cruz, protegida por figuras divinas. Aos seus pés dobram-se os joelhos de três mulheres visivelmente pobres, dentre as quais duas são negras. Passam desapercebidas pelas demais personagens. A dramaticidade de seus gestos revela que são as únicas figuras da composição verdadeiramente comovias pelo ato (sobretudo a criança que vai ao colo de uma delas, simbolizando o futuro). Essa tela estabelece relações com Alegoria da Lei do Ventre Livre (1871) do mesmo artista. Repete-se a ideia de doação, a presença destacada da Igreja e do Estado. Os escravos mostram-se efusivamente gratos, em situação inferior e provam da indiferença do ator principal às suas existências. A festividade dos escravos se dá, outrossim, pela possibilidade de pleitear a sua liberdade independente da anuência dos senhores. 5CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo, Companhia das letras, 2004.

Miguel Navarro y Cañizares, Lei áurea (1888)
Miguel Navarro y Cañizares, Alegoria da Lei do Ventre Livre (1871)

Pedro Américo também produziu uma tela que fala da abolição. É Libertação dos escravos (1889). O foco central do quadro está, uma vez mais, na concessão da liberdade. Um demônio vencido, contorcido sob o chão, representa a morte da escravidão. Os escravos dão graças aos céus. Estão de costas para nós, somos incapazes de perceber suas individualidades. Efusivamente agradecem e comemoram o que está por vir.

Libertação dos escravos (1889), Pedro Américo.
Pedro Américo, Libertação dos escravos (1889)

Nesse sentido Independência ou Morte! é coerente. A escravidão estava ali presente, embora de maneira bastante discreta. Os escravos foram representados como seres passivos, alheios aos grandes acontecimentos políticos, incapazes de ações que pudessem mudar seu miserável destino, corpos subalternos tidos e havidos para o trabalho. Se não eram vistos como atores decisivos na abolição, que dirá na luta pela independência A tela busca construir uma narrativa mítica sob a constituição do Brasil enquanto país. Essas representações ajudaram a formatar uma ideia de que os negros não eram sujeitos, não tiveram relevância na conformação da sociedade brasileira. Isso explicaria sua marginalidade – além do racismo, que invadia, à essa altura, a arena política com grande força. Eram, quando muito, espectadores inertes.

Como se sabe, o modernismo abordaria essa presença negra nas décadas seguintes, Tarsila do Amaral, Portinari e Di Cavalcanti, cada qual à sua maneira intentou incorporar os negros numa grande narrativa da história da arte, mas antes disso, de país. Fato é que, de qualquer maneira, no entre-séculos já era possível perceber uma geração de artistas preocupados com essas questões, Arthur Timótheo da Costa, Armando Viana e muitos outros deslocaram a narrativa. Seus retratos de pessoas negras, fossem trabalhadores ou “vadios”, traziam uma visibilidade nunca antes experienciada, mas, mais do que isso, encaixaram essas personagens numa grande narrativa que age sobre aquilo que insistimos em chamar de realidade.

O menino (1917), Arthur Timótheo da Costa.
Arthur Timótheo da Costa, O menino (1917)
A negra (1923), Tarsila do Amaral.
Tarsila do Amaral, A negra (1923)

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Esse texto foi originalmente publicado no livro onde está pedro américo? (museu do louvre pau-brazyl, 2018) e revisado em junho de 2021.

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    Vide: AZEVEDO, Celia Marinho. Onda Negra, Medo Branco: o medo no imaginário das elites, século XIX. São Paulo, Companhia das letras, 1987.
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    Na filosofia pré-socrática Chronos é a personificação do tempo e da imortalidade. Durante a renascença passou a ser associado mais frequentemente ao Titan Cronos, o Deus do tempo por excelência. Cf. LIDDELL, Henry George & SCOTT, Robert, A Greek-English Lexicon. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/
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    Já na Europa, no mesmo período, o momento era diverso, a prática tão comum no século anterior fora solapada pelos ventos das vanguardas modernas. Ver COLI, Jorge. O sentido da Batalha do Avahí, de Pedro Américo. Projeto História, no.24, São Paulo, junho de 2002, pp.113-127.
  • 4
    Sobre esse pintor. Cf. RUMMLER DA SILVA, Viviane. Miguel Navarro y Cañizares e a Academia de Belas Artes da Bahia: relações históricas e obras. REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA. Ano 2, nº 2, outubro 2005. Disponível em http://www.revistaohun.ufba.br/, acessado em 13 de junho de 2013.
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    CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo, Companhia das letras, 2004.

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