Alguma versão pode ser uma interpretação, indica particularidades sobre o modo que diferentes indivíduos têm de executar uma mesma ação ou de se referir a um mesmo evento. Também pode ser definida como tradução. As versões são inerentes ao mundo digital e tecnológico que habitamos com a constante atualização dos softwares, aplicativos e navegadores em suas obsolescências programadas e revisões de sistemas. Todas as formas artísticas lidam à sua maneira com versões. Na história da pintura há diversos artistas interpretando temas como a Anunciação, Salomé e a cabeça decapitada de João Batista em uma bandeja, o encontro de Odisseu com as Sereias ou São Sebastião, santo que intercede contra as pestes, que atravessa os mosaicos medievais, a tinta a óleo do Renascimento até chegar na versão fotográfica de Kishin Shinoyama em 1968. A arte contemporânea também lida com versões nas suas operações de apropriação e citação de referências.
O museu do louvre pau-brazyl, versão delirante de franquia institucional no edifício Louvre de Artacho Jurado chega ao fim após cinco anos de atividade com a exposição da obra ALGUMA VERSÃO DE ALGO QUE ACONTECEU do projeto Chopped Liver Press criado pela dupla Adam Broomberg & Oliver Chanarin, que também encerra a sua colaboração criativa depois de 23 anos.
Enquanto o Museu do Louvre de Paris se desdobra em novas versões através de suas franquias em Lens e Abu Dhabi, o edifício Louvre em São Paulo foi concebido para ter função mista residencial e comercial: do luxuoso planejamento preliminar de condomínio cidade & clube que previa jardim de inverno, galeria de arte, restaurante e bar no térreo e no terraço para a execução concreta que loteou o térreo e o mezanino para lojas e escritórios. Entre 2016 e 2021 os usos e significados de cada parte do prédio foram a força motriz para uma série de exposições e publicação de livros do louvre pau-brazyl. Os pôsteres com reproduções de obras que decoram os halls de entrada dos blocos Da Vinci, Rembrandt, Renoir e Velázquez formam o primeiro corpo imagético-imaginativo deste museu; a ausência de gravuras e do nome Pedro Américo dos cinco blocos do fundo informa sobre as assimetrias de representação.
A ideia de versão pode ser um dos pontos de entrada no corpo da produção de Broomberg & Chanarin: camadas, versões, colagens, citações vão tomando diferentes formatos e novos usos vão se sobrepondo em diversos projetos. Para mencionar alguns exemplos, eles reimaginam e atualizam obras de outros artistas como o War Primer de Bertolt Brecht transformado em War Primer 2 por meio de acréscimo de imagens de guerras e conflitos contemporâneos sobre recortes fotojornalísticos do período da Segunda Guerra Mundial ou a exposição DoDo realizada no Jumex em 2014 que tem como núcleo o filme satírico de guerra Catch-22 – versão cinematográfica do livro homônimo de Joseph Heller. O filme ambientado em Pianosa, Itália, em 1944, foi gravado em San Carlos, México, pois o deserto mexicano de 1969 era uma versão mais aproximada da paisagem italiana dos anos 40 do que a própria região de Pianosa. Os artistas resgataram fragmentos inéditos de negativos arquivados na Paramount Pictures para editá-los como um documentário de natureza do México de 1969 – uma sucessão de paisagens que já não existem mais.
“Be furious you are going to die”, uma citação retirada do livro de Heller, foi eleita lema da dupla, intitulou o ensaio que acompanha a publicação da exposição e se transformou em pôster do Chopped Liver Press. As reaparições e cruzamentos entre a obra imagética e os cartazes com as citações são recorrentes: “Bandage the knife not the wound”, dito por Joseph Beuys, nomeia uma série de montagens fotográficas e integra o acervo do Chopped Liver. O mesmo acontece com “When will you fuckers learn” que aparece em um cartaz em uma fotografia que faz parte do Archive of Modern Conflict inserida nas obras Holy Bible e Divine Violence, essa mesma frase se atualiza em um pôster.
O trabalho de Broomberg & Chanarin como dupla e o projeto de publicação de edições limitadas de livros e pôsteres estão profundamente conectados; com o “suícidio criativo” dos artistas esse arquivo com citações estampadas em páginas selecionadas do New York Times Internacional pode ser interpretado como um “memorial literário” do duo extinto.
Os pôsteres seguem a tradição de cartazes de protesto, feitos à mão, com mensagens claras e uma coletividade inerente, ao mesmo tempo que dão uma camada de intimidade e acesso ao diálogo e troca de referências de uma criação em dupla; por isso a obra questiona em diversos níveis: quem é o autor da História? Alguns pôsteres têm relações mais diretas com o contexto sócio-político do momento, como o “Baby, it’s cold outside” produzido sob a iminência do Brexit no Reino Unido e outros mais poéticas como “Head is where the heart is”, um verso de Lydia Davis.
Epitáfios também interessam aos artistas, essa forma de verso – o último verso, que aproxima a literatura da morte. A inscrição na lápide de Man Ray “Unconcerned but not indifferent” foi o título de um ensaio escrito pela dupla e eles já usaram o epitáfio de Marcel Duchamp “Death always happen to other people” em uma tiragem do Chopped Liver Press. “Some version of something that happened” foi a escolha para ser o epitáfio deles, uma citação retirada de uma entrevista com o escritor norte-americano Dave Eggers que estampa o último pôster do projeto e a empena dos fundos do edifício Louvre.
Essa frase nos leva aos terrenos do olhar em retrospectiva, que tece redes de interações do passado no presente, dos desencontros entre uma situação vivida e a construção subsequente da lembrança, das adaptações, revisões e interpretações até seus aspectos mais conflituosos da guerra cognitiva em que o campo de batalha são as narrativas, as versões. Circunscrita aos projetos que chegam ao fim, essa frase faz a passagem para que eles possam existir a partir de agora como arquivo, vislumbrando a infinidade de leituras e atualizações que podem derivar.