somente para seus olhos

Me disse adeus
No espelho com batom

Ao justificar o seu projeto para a extensão do Louvre através de uma pirâmide de vidro no cour Napoleon, o arquiteto sino-americano Ieoh Ming Pei alegou que queria fazer um novo “centro de gravidade” para um novo museu. Embora parte de uma complexa rearticulação do museu, Pei soube resumir a radicalidade de sua intervenção na forma pura da pirâmide, uma forma que, ao conter tantos símbolos, termina por não significar nenhum. Ademais, optou por resolver o volume como o mais transparente possível, ao mesmo tempo que desaparece como fantasma, está presente como um gigante no meio do acervo do Louvre.

Quinze anos antes, os arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers já haviam introduzido a transparência e a eloquência estrutural no Centro Cultural Georges Pompidou, que arrasou quarteirões do Marais impondo à Paris uma nova máquina cultural. Baudrillard percebeu o quanto o entorno tornou-se apenas uma buffer zone para que se pudesse acessar esse novo mundo a partir da nova arquitetura, uma “máquina de fazer vácuo, como centrais nucleares”, algo cuja inserção criaria uma sucção de toda a capital francesa. Os termos dessa “sucção” eram colocados pelo escritor como políticos: “O centro é uma matriz para desenvolvimento de um modelo de segurança absoluta sujeita à generalização em todos os níveis sociais, sobretudo um modelo de dissuasão”. Naquela experiência de cristalização de um centro cultural e evisceramento de seus componentes, Baudrillard sentia que tanto quanto a arquitetura se modernizava, rapidamente os sistemas de opressão dela se nutriam: um monumento prototípico à vigilância total.

Baudrillard conectou um projeto de midiatização de um edifício cultural como estado da arte de opressão (constitucionalmente) endossada, que se tornaria a regra nas democracias do Norte, com suas câmeras, grampos e drones. A pirâmide do Louvre se apropriou daquela dissuasão que no Pompidou aparecia como modelar e a ladeou ao seu acervo milenar. O Pompidou é um projeto do século XX que mescla a fruição de obras contemporâneas misturadas com o entretenimento das salas de cinema e do passeio por seus cafés diante de praças e espaços livres; o Louvre é mais atento às pretensões do século XVIII de reunir corredores e corredores que resumem história de toda a humanidade. É nele que estão as celebradas Mona Lisa e Vênus de Milo, o Código de Hamurabi, uma das primeiras legislações que se tem registro, os tesouros egípcios, bustos gregos, inúmeras representações de São Sebastião perpassado por flechas, as mitológicas exaltações do Iluminismo feitas por David, Gericáult e Delacroix. Essa fruição se dá por alas e sessões fechadas: há janelas e lucernários, mas, no fundo, o museu tem na sua espacialidade a organização formatada durante o século XVIII, de privilegiar o contato intensivo, sem distrações, com o acervo.

Qual a relação então do acervo com a pirâmide? Abaixo dela não existem obras de arte, ela antes de tudo organiza as circulações e resolve os problemas práticos como as filas de acesso, etc. Ela é a soleira que isola as obras de arte da cidade: é um portal, mais do que museu em si.

Nas intervenções mais recentes, entretanto, a transparência definitivamente entrou pelas alas e espaços, misturando-se como uno às estátuas, objetos e obras de arte no espaço. O Louvre expandiu suas sedes para além do seu palácio original, tendo já inaugurado, na cidade de Lens, um edifício com projeto do Sanaa e está, há vários anos, preparando outro em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.

Em Lens, os arquitetos japoneses Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa invertem a relação entre opacidade e transparência: os serviços, apoios e administração são rigorosamente escondidos em dois pavimentos enterrados, e no nível térreo, o acervo é todo exposto em fachadas e vedos internos de vidro. A estrutura é resolvida como finíssimos pilares brancos que se diluem nos montantes de alumínio polido que sustentam a fachada. O discurso pavilhonar integra as obras de arte num plano único e cujas definições de forro e luminotécnica permitem que a luz seja controlada e customizada para qualquer tipo de exposição.

As alas se sucedem como caixas de vidro, definida pelos arquitetos como “barcos aproximando-se nos rios para delicadamente se conectarem em conjunto”. A sua inserção num sítio, que antes era uma mina de carvão, o deixa completamente solto na paisagem, dialogando com uma ampla praça de chegada pela qual se pode dar a volta completa no prédio enquanto se frui de um espaço público.

Museus transparentes com acervos antigos não são novidade: pode-se imaginar desde o MASP em São Paulo até a caixa de vidro de Richard Meier em Roma no Ara Pacis. A questão do edifício em Lens é que se trata de uma sucursal do Museu do Louvre, o que subverte as intenções basilares do museu de reunir a história da humanidade: agora, trata-se de espalhar essa história, imprimindo um ritmo de contenção e expansão para os quais as paredes de vidro são mais do que meras colaboradoras: a máquina de fazer vácuo agora não suga mais somente o espaço, mas também o tempo: passados quarenta anos da inauguração do Pompidou, a história universal passa a estar sujeita ao escrutínio e aos olhos da democracia vigilante: tudo pode.

Em Abu Dhabi, essa inversão de premissa museológica toma contornos mais profundos. O projeto de Jean Nouvel é sintético como a pirâmide em Paris: uma cúpula que cobre plataformas que se misturam com canais de água salgada. Nouvel é um arquiteto de obra complexa, mas nessa experiência, ampara-se em soluções de citação de elementos arquitetônicos, arabescos típicos de seu acervo técnico, sobretudo, o Instituto do Mundo Árabe em Paris, que tem em sua fachada muxarabis reguláveis numa modernização dos filtros de luz típicos da arquitetura tradicional do Oriente Médio. No Louvre Abu Dhabi a solução é análoga: a cúpula em si cita vagamente as mesquitas islâmicas, mas com propriedade diferente: sua estrutura é vazada, filtrando a luz do alto através de um trançado que igualmente remonta às milenares formas de tratamento de iluminação. Pouco importa se agora as aberturas são rendilhadas através de um programa de parametrização computadorizada: o fato é que a cobertura sequer chega a se realizar como uma opacidade, sendo um entremeio entre aberto e fechado.

Sob a cúpula, o museu é uma sucessão de volumes que se resolvem em salas fechadas, às vezes se abrindo para jardins internos, às vezes para o Golfo Pérsico. Nas maquetes eletrônicas, sobressai-se o discurso de que não há encerramentos laterais nas galerias – fora das salas brancas e sob a cúpula não há vedação – a transparência é total nos corredores, que deixaram de se mesclar com as exposições: o pavilhão, a cobertura, as sessões e alas se desfazem. O acesso aos espaços é por barco ou por plataformas flutuantes e seu acervo é só parte de um complexo que visa criar espaços de reflexão e de fruição de chás e alta gastronomia.

Claro, subscreve-se ao modelo de museu do século XXI, onde a história é um pretexto para que se faça mais um contexto de consumo através de fetichizações banais. No entanto, ao se colocar sobre um fio, que liga a cúpula de Abu Dhabi à pirâmide de Paris, nota-se como o Louvre prefere, na sua subscrição à arquitetura contemporânea, uma nota constante de tons enuviantes da sua proposta original de flanar por obras de arte entre corredores e sessões destacados do mundo. O mundo mesmo é sugado para dentro de seu acervo, e não apenas aquele bem-sucedido da capital francesa, mas também das cidades esquecidas no interior francês e sobretudo naquelas mecas de gastos vultosos patrocinados pelos países do Oriente Médio.

Walter Benjamin, ao escrever sobre as passagens de Paris, com suas transparências, dizia que eram como “casas ou corredores que não têm nenhum lado externo – como o sonho”. Afastando-se de Baudrillard e aproximando-se de Benjamin, pode-se tecer o raciocínio de que, no fundo, todos os procedimentos feitos nesse fio de transparências remetem à intenção de tornar onírica uma experiência concreta: o saque dos egípcios na missão de Napoleão, as pilhagens das obras de arte italianas mesclando-se com as novas opressões do presente, como a exploração persistente de populações sem direitos civis nos países distantes do Oriente; tudo é dirimido em uma abstração desnorteadora. Se Horkheimer dizia que na imponente e elegante ordem haussmaniana de Paris esconde-se a brutal violência que a viabilizou, nesses museus transparentes, o testemunho da barbárie está escondido: tudo é menos marcante e etéreo. Dentre todos os símbolos, o mais marcante que se aplica às pirâmides é o de sepultamento: o que aquela do Louvre escamoteia é a capacidade de transcriação visceral do próprio museu, no qual a memória da opressão e da pilhagem nunca é escondida e sempre é escancarada, o que imediatamente advoga por uma apropriação crítica.

Trata-se de um sintoma de uma “transparecência ” generalizada da cultura, um processo exaustivamente tratado desde os anos 1960 e reforçado por outros pontos do processo, como a distante presença dos arquitetos nesses países, protegidos por seus escritórios internacionais em que tudo se resolve à distância, ou mesmo os intensos trânsitos do capital que se cristalizam eventualmente em monumentos frívolos. A amplitude dessa operação é transversal: seus efeitos não se limitam apenas ao âmbito estrutural de opressão concreta da sociedade contemporânea, mas também da retirada de toda possibilidade da superestrutura de impor inesperadas resistências. Apaga-se a força transformadora não só do Louvre, mas da Arábia, do vidro, da transparência, do Egito Antigo e do sonho.

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O museu do louvre pau-brazyl não é um palácio, não foi construído sobre minas de carvão e nem mesmo num promontório diante do mar. Ele é um prédio de uso misto, mas sobretudo residencial. No seu acervo, escondido em gavetas e armários, está toda a história de pessoas esquecíveis. O significado dessas coisas e a importância de sua exposição é incerto e nessa incerteza está a sua força: o nosso Louvre armazena segredos de pessoas comuns. Não existe senso em tornar o edifício Louvre numa sucursal do Louvre se for para dar a ele tons de transparência típicos das operações em andamento pela instituição. Porque o bilhete secreto que agora está na gaveta de um anônimo só tem valor por estar dentro de uma gaveta. A roupa secreta de gala que está no armário no nono andar só serve se encerrada na meticulosa estrutura que a  protege: armário, cômodo, corredor, hall, elevador, hall de novo e portão. O caráter residencial pressupõe sigilo, e museus não se adequam à noção de sigilo a não ser como sigilo exposto: as barcas cerimoniais que ficavam somente à disposição dos sacerdotes nos templos egípcios têm que ser mostradas, do mesmo jeito que as cartas dos escritores famosos do século XX são publicadas à revelia de sua anuência. O louvre pau-brazyl poderia ir pelo caminho de celebrar essa exposição da memória banal, mas não é disso que se trata: isso quebraria o sigilo inerente à vida em andamento, já que a sua revelação é portadora de uma força somente se ela não for frívola. A força do museu do louvre pau-brazyl é que ele subverte as correntes contemporâneas de “casa museu” ou “palácio museu” ou suas generalidades: ele é um museu-casa, um lugar onde as salas estão abertas ou fechadas para o mundo conforme a conveniência e ocasião.

Poderia ser uma casa, uma loja, um espaço qualquer, menos um museu. Por isso é o mais eloquente museu de São Paulo, cidade em que a obsessão pelo privado criou uma mitologia da exposição e do resguardo que escapa das noções oitocentescas de interior e exterior, de acervo e de pilhagem. A história da humanidade nunca vai caber num palácio, oferece-se a pretensão humilíssima que segredos possam caber de novo em uma casa.

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Este texto foi originalmente publicado no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em junho de 2021.

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