se fosse um museu…

Cena 1: Se o museu fosse um museu burguês

Imagine um museu que é proprietário ou cuida de uma coleção de objetos considerados excepcionais, aos que atribui um valor cultural e econômico; objetos que o museu pretende conservar para o (ou um) futuro. Um museu que, como instituição, acredita que precisa se preservar para preservar o que está dentro dele. Um museu que demanda daqueles que o visitam um capital cultural determinado, uma atitude, um comportamento corporal. Um museu em que trabalham pessoas com diferentes funções, responsabilidades e capacidades (e tipos de contrato e escalas de remuneração).

Agora imagine um museu sediado em um lugar temporário, onde um grupo de objetos chegou por um processo de deslocamento, com a violência (roubo, expropriação) como um fator chave. Esses objetos têm, no museu, um valor específico, certamente econômico, mas também são objeto de outro tipo de apreciações. Eles estão nas mãos de um grupo de pessoas que compartilham um objetivo comum, mas estão motivados talvez também por interesses individuais divergentes – pessoas com uma relação temporária mas com efeitos potencialmente irreversíveis para o destino desses objetos. Bem que, certamente, esse destino é, em grande parte, incerto.

A primeira imagem é um clichê, uma simplificação típica do discurso crítico. Mas talvez, também, uma caracterização básica do que o museu burguês (ou, simplesmente, o museu) é. A segunda imagem descreve uma pintura, de Lukas Duwenhögger, intitulada Persual of Ill-Begotten Treasures [Uso de tesouros de origem ilegítimo, 2003, em tradução livre]. Mas talvez seja, também, uma caracterização básica do que o museu burguês (ou simplesmente o museu) é. As duas imagens, juntas, em suas contradições, criam um retrato menos simples, mais fiel, e mais produtivo, do que a instituição museu é, e talvez, começando aí, do que ela pode chegar a ser.

A mais intensa contradição entre as duas imagens é, provavelmente, a oposição entre um dever, em positivo (o dever do museu como instituição, sua tarefa de conservação, de contribuição para a “coisa pública”) e uma transgressão, em negativo (o museu como resultado de uma ação originária ilegítima). Que o conceito da coisa pública burguesa esteja fundamentada numa acumulação originária (uma expropriação, de classe e colonial) não é novidade. E o museu moderno participa dessa acumulação de um jeito duplo: como instituição, ele é possível graças à acumulação originária do capital, tanto no caso dos museus “republicanos” de modelo europeu como os museus patrícios de patrocínio na América do Norte. A segunda acumulação, talvez mais tangível, mais fácil de perceber, e que serve de espelho para a primeira, está no origem da coleção de objetos que fazem parte de seu acervo.

Que tipo de trabalho podem os museus fazer, hoje, cientes dessa história, sem fazer abstração dessa violência que fez, e faz do museu uma instituição possível? Quais as consequências para a habilidade da instituição para conectar aquilo que foi deslocado, desapropriado, com os antigos proprietários, com aqueles que têm uma relação histórica ou política com os objetos do acervo? E com aqueles que não tem relação nenhuma?

Cena 2: Se o museu fosse um museu da periferia

Imagine um museu que escapa dessa dupla acumulação originária. Um museu que é o resultado de um investimento pessoal – vital, intelectual, emocional e laboral – de um indivíduo rodeado de um pequeno grupo de pessoas, com o impulso de conservar e apresentar a arte e a cultura da periferia – não como ato de preservação e representação, mas por sua potencialidade como ferramentas no processo de construção cultural de uma periferia, e de construção de uma cultura de periferia.

Esse museu poderia ser o Acervo da Laje, no bairro Plataforma da cidade de Salvador, Bahia. Criado e desenvolvido por José Eduardo Ferreira Santos, o museu é uma coleção – de pinturas, esculturas, objetos, imagens, livros…– acolhida no espaço doméstico onde José Eduardo mora. Um espaço que vira, assim, espaço público. (Mas conscientes que qualquer distinção nítida entre o privado e o público é uma quimera teórica, ou uma imposição política, provinda do Norte). Os elementos da coleção em constante crescimento são obras de artistas da periferia, de Salvador e outros lugares, adquiridos por José Eduardo com seus recursos, identificados graças a um exercício de procura e cuidado. Na origem não há acumulação, só no resultado: salas repletas de peças, de objetos individuais ou de séries, de obras de arte que coabitam nos quartos e corredores. E todos eles aparecem acompanhados por histórias orais que são o resultado de um envolvimento intelectual e sentimental de José Eduardo, e que, à sua vez, resultam no envolvimento com as obras, com a instituição daqueles que as encontram.

Como museu, o Acervo da Laje não se entende exclusivamente como um acervo, mas como lugar de educação e troca, lugar de passagem para a comunidade (se) ver, (se) entender, e (se) fazer mais do que já é. No Acervo da Laje não há separação entre o que foi ou é colecionado e aquilo exposto. Não há problemas a resolver na conexão do acervo com o público. É um museu que transgride as regras do museu burguês – nos artistas e objetos que coleciona, nas posições sociais e nas (ausência de) hierarquias de aqueles que estão envolvidos, em sua paixão e boa vontade, na escala e nos métodos. E, com elas, transgride-se também a ilegitimidade originária do museu burguês, aquilo que faz da cultura burguesa aquela exclusiva de uma parte (apenas) da comunidade.

Cena 3: Se o museu fosse um museu arqueológico

Imagine um museu que acolhe peças arqueológicas, figuras de pedra, carimbos, estelas, cuias, dioramas, vasos, máscaras dos povos que ocupavam um território americano antes da invasão espanhola. Um museu que mostra esses objetos em vitrines de madeira e vidro, organizados cronologicamente, mostrando suas origens, e especulando sobre o jeito como foram utilizados. O Museo Comunitario del Valle de Xico, na cidade de México, é um entre muitos museus arqueológicos que poderiam corresponder a essa caracterização. O que lhe diferencia é sua história, e sua atitude. Localizado na periferia leste da cidade, o museu e seu acervo são o resultado de uma coleta, feita por moradores, de objetos pré-colombianos encontrados na área – objetos que são mostrados no antigo casarão, hoje em ruínas, do cacique espanhol que foi “dono” da área durante os tempos coloniais. Com uma organização horizontal e de trabalho voluntário, o museu é responsável pelas peças (sob autorização do instituto arqueológico nacional), e desenvolve um programa que também vai além de preservação e disseminação: publicações em xerox sobre temas históricos, políticos e arqueológicos, oficinas de pintura, de nahuatl, de gravura, de grafite, de escultura, de geografia local; atividades que, em conjunto, fazem do Museo Comunitario del Valle de Xico um centro de construção de comunidade e luta política.

O reconhecimento oficial da capacidade do Museo para cuidar e preservar as peças, contrasta com a “ilegitimidade” da ocupação do lugar, dos sistemas de display frágeis, e inseguros da instrumentalização programática do material arqueológico, da relativização das competências daqueles envolvidos… Oposição que se assenta em uma reclamação de urgência: os materiais arqueológicos do acervo (e, por extensão, qualquer material arqueológico) só fazem sentido como ferramentas para um fazer e um desfazer micro e macropolíticos. Não é questão de história, de passado e de futuro, é questão de lutas que precisam ser enfrentadas hoje.

Cena 4: Se o museu fosse um museu trans

Imagine um museu que é um “trabalho de vida” de um indivíduo. Um museu itinerante, que reescreve a história toda de um país– e, por analogia, dos países vizinhos, todos antigas colônias. Um museu de objetos, mas também de imagens, de histórias, de eventos, de lembranças que, desde tempos ancestrais, mostram o que a história oficial não quer contar, e quanto essa história é a herança de um projeto colonial – como a própria instituição museu.

O Museo Travesti del Perú, de Giuseppe Campuzano seria esse museu – uma instituição que transgride a história com atos de travestismo: o travestismo do autor, santa reveladora de verdades ignoradas e mártir de um processo de ocultamento; o travestismo dos eventos ignorados pela história oficial, protagonizado por tudo aquilo que é trans, aquilo que não é nem homem nem mulher; o travestismo, finalmente, de uma história que se apresenta como alternativa aparentemente “pobre”, mas que é em sua insistência e em sua consistência, resultado inegável e surpreendente, por sua capacidade de proporcionar prova das manipulações da ‘História’ (colonial, moderna, europeia).

Se o Museo Travesti del Perú consegue fazer isso é talvez graças a um outro travestismo, um apresentar-se “como o que não é”: seu formato de historiografia linear, herança moderna chave (do museu), esconde atrás da “simplicidade” dogmática e “inocente” da história como progresso, uma bomba narrativa que a atravessa como uma flecha.

Cena 5: Se o museu fosse um museu do índio

Imagine um museu dedicado às vítimas principais do processo de colonização das Américas, os povos indígenas. Um museu que é o repositório de objetos ancestrais, um museu que trabalha com indivíduos desses povos para o registro e disseminação de suas culturas, mas ao mesmo tempo um museu do Estado (e, consequentemente, branco). Imagine esse museu ocupado por membros de um povo indígena vizinho, em protesto por uma crise de moradia causada pelo Estado. Imagina que o museu lhes expulsa para garantir sua função de preservação e instala arame farpado para prevenir futuras ocupações.

Esse museu é o Museu do Índio no Rio de Janeiro – uma instituição da Funai que tem como objetivo “contribuir para uma maior conscientização sobre a contemporaneidade e relevância das culturas indígenas”– continuando com a ideia de museu com que começamos: preservação, promoção, e esfera pública. Também, como o museu com que começamos, fundamentado em papéis, funções, possibilidades e competências nítidas. O museu faz pesquisa e cultura, e, ao se engajar em questões políticas, isso deve acontecer a partir de formas específicas de pesquisa e de produção cultural, com um âmbito de criação separado. O museu, como a universidade, é dirigido e protagonizado por aqueles com competências certificadas administrativamente pelo Estado (branco), por aqueles que conseguiram se integrar no sistema de produção de conhecimento moderno. O museu, como instituição pública, não pode ser utilizado “ilegitimamente”, contra suas funções, ou por aqueles que não estão autorizados a lhes ocupar seguindo interesses concretos. O museu, como instituição do Estado, pode (deve) pedir ajuda às forças do Estado em sua defesa, quando percebe que suas funções e mecanismos de funcionamento estão em risco.

Coda: Arco e flecha

Imagine uma perspectiva mais otimista.

Semanas antes da ocupação do Museu do Índio, no inverno de 2016, o pajé Toninho Maxakali acabou com sua própria vida, utilizando a corda de seu arco. Entre os Maxakali, como entre outros povos indígenas do território brasileiro, os objetos que pertencem a uma pessoa precisam sumir com ela, após sua morte, sob perigo de persistir como lembrança da ausência daquele ou daquela que faleceu, como fonte de uma dor que não termina. Quando Toninho faleceu, suas propriedades foram destruídas, com a exceção do arco, de outro arco que estava construindo e de várias flechas, objetos que a família doou para o Museu do Índio no Rio.

Assim como nos fundamentos do museu burguês, há aqui uma contradição, talvez ainda mais intensa. Nos atos dos familiares do Toninho estão em jogo duas lógicas incompatíveis: por um lado, uma lógica Maxakali da co-presença dos corpos e suas coisas, ou as coisas e seus corpos, e por outro, uma lógica moderna da história, acumulativa e projetiva. A doação parece sugerir que os objetos poderiam navegar diferentes mundos; e que poderiam ser sacrificados, pois escapariam da lógica própria de seu lugar de origem ao se inserir na lógica do museu. Mas, ainda sendo sacrificados com sua entrada no museu, não deixam de ser arcos e flechas, armas de luta. Se o museu for fiel a essa sua natureza, quando os acolhe, reconhece não só a necessidade de lhes utilizar como ferramentas de luta, ainda se, fora da lógica da legitimidade, isso implicasse imaginar a possibilidade de que o museu eventualmente deixasse de ser.

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Este texto foi originalmente publicado no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em maio de 2021.

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