Muito diferentes dos registros fotográficos da arquitetura no século 20 – que costumam enquadrar os encontros formais, a acurácia das proporções e a sobriedade dos materiais – as fotos dos edifícios projetados por João Artacho Jurado e incorporados por Aurélio Jurado Artacho, irmãos e sócios da Construtora Monções, mostram poses de seus familiares em trajes de gala, apontando para o capricho dos empreendimentos. A filha única de João e Mercedes, Diva, aparece muitas vezes nas imagens cortando uma faixa nas inaugurações, que contavam com políticos e celebridades da televisão e do cinema em suas premières. 1Em outras imagens aparecem também os funcionários da Monções, todos os anos convidados, juntamente com suas famílias, para as festas de Natal, que muitas vezes ocorreram nas obras do edifício Louvre, com palhaços e músicos contratados e entrega de presentes para todos. Artacho manteve longas relações de confiança e amizade com os fornecedores que contratava, o que permitiria uma outra série de interpretações. A fotografia serviria à arquitetura, no primeiro caso, para retratá-la como um objeto estético a ser contemplado, e a segunda, para divulgar um estilo de vida, assim como revela a relação afetiva e familiar com que Artacho tratava os seus prédios. O construtor morou, junto com sua família, em vários edifícios que projetou; realizava-se com cada detalhe dos prédios, entregues ou em construção, desenhando-os minuciosamente e divulgando-os à exaustão depois de prontos, mesmo que, em geral, já estivessem vendidos.
Pelo que se sabe, João Artacho Jurado não concedeu entrevistas, não anotava pensamentos e rascunhos em diários, tampouco deixou uma biblioteca com livros e registros de suas referências. Fugindo do estereótipo do artista criador e intelectualizado, não lia ou escrevia com constância. Isto ajuda a explicar, junto com o próprio desinteresse acadêmico diante do suposto mau gosto e desprezo aos cânones da arquitetura, o parco material bibliográfico sobre a Monções. Fabulo, porém, a partir dos relatos de familiares, os quais entrevistei em 2016 (além de Diva, conversei algumas vezes com Silvia e Marco Aurélio Jurado, filhos de Aurélio; Luli Penna e Teca Eça, netas de Aurélio), sobre os desenhos e as fotografias do acervo da família a que tive acesso, e também em razão da minha própria convivência com suas edificações. Trata-se, portanto, de um exercício de ficção, controlada e fundamentada pelas memórias, por afetos e gestos de quem os conheceu intimamente e participou de momentos cruciais da construtora, sobretudo da sua crise.
Os irmãos que viriam a ser sócios da Monções eram os dois filhos de Ramon e Maria Dolores, imigrantes espanhóis da região de Málaga. A mãe era muito católica, tanto que os filhos construíram no bairro da Pompeia um prédio próximo a uma igreja para que ela morasse; já o pai era anarquista, trabalhou na General Motors e foi demitido depois da crise de 1929. Por não tolerar que os filhos jurassem a bandeira, retirou-os da escola ainda crianças, desde quando passaram a estudar em casa. Aurélio começou a vida trabalhando como office boy, frequentou escola de comércio e tornou-se contador. João ingressou em um curso técnico de desenho de perspectiva e seus trabalhos iniciais foram com projeção de neons; em seguida, passou a participar do desenvolvimento de stands de feiras que divulgavam as novidades da indústria, em ascensão nos anos 1940. 2Essas feiras deram início ao processo que resultou anos depois no Parque do Ibirapuera, com os Pavilhões que seriam desenhados pelo arquiteto Oscar Niemeyer.
Segundo seus familiares, João era um homem perfeccionista, autodidata e observador, também solitário e autocentrado. Com algum conhecimento de perspectiva, além de uma excelente noção espacial e desenvoltura para administrar mão de obra, conseguiu progressivamente realizar os prédios à sua maneira, com larga e crescente aceitação dos clientes. Passava a maior parte do tempo trabalhando na sede da incorporadora, que em seu auge se localizou no número 140 da Rua Barão de Itapetininga, no edifício Rio Branco, um dos endereços comerciais mais elitizados da época. Mantinha então o hábito de almoçar todos os dias no restaurante do Mappin, onde encontrava políticos, empresários e outros potenciais parceiros de negócio. Familiares se lembram de que nos finais de semana percorria de carro com seu irmão a cidade para encontrar terrenos para construir. Tanto seu escritório como sua casa costumavam ter amplas janelas, com vistas para a cidade – para Artacho, era necessário projetar janelas das quais fosse possível ver a cidade sentado em uma poltrona, onde fumava charutos e escutava ópera, sua maior paixão – enquanto desenhava durante a madrugada os edifícios, a maior parte deles projetada no mesmo apartamento onde João e a família moraram no Edifício Piauí, o primeiro da Monções no bairro de Higienópolis, onde se concentram muitos dos ícones da arquitetura moderna paulista.
A preocupação comercial de Artacho em vender seus prédios rapidamente e enriquecer não deve reduzir ou simplificar os sentidos do seu trabalho. 3Os significados de suas decisões projetivas podem ser recompostos no presente: se estas decisões já foram consideradas simplesmente consequência do marketing de venda dos apartamentos, contrastadas com a defesa da função social da arquitetura, por exemplo, hoje elas podem ser contrapostas a certos problemas da arquitetura moderna, apenas percebidos no futuro. É preciso afastá-lo de qualquer preconcepção pejorativa (impreciso, errado, cafona; construtor de espaços sem ordem, mal dimensionados e picotados) ou valorativa (ícone, cult, desejado). Deve-se fugir da chave “gostar” ou “não gostar” da crítica de arte e arquitetura, e perceber esses prédios como agentes que merecem que pensemos juntos com eles. Ver: YANEVA, Albena. Mapping Controversies in Architecture. Surrey: Ashgate, 2012. Os itens decorativos não eram privilegiados apenas para causar impacto e, assim, comercializar as unidades. Apesar do custo elevado daqueles adornos e da oposição a eles dos arquitetos do período, Artacho exigia que os prédios fossem construídos desse modo, pois desejava que seus compradores e ele próprio usufruíssem daquele prazer visual em seu dia a dia futuro. A formação no desenho de neon, os projetos das feiras e o seu hábito de escutar e frequentar ópera – pela qual era apaixonado, comprava as temporadas completas do Theatro Municipal de São Paulo –, por sua vez, fornecem as fontes fundamentais de como o construtor encontrou um caminho estético para sua vontade criativa.
Como Artacho, no início de sua carreira foi projetista de neons, anos depois, ao ampliar os programas das áreas comuns dos edifícios, incluiu espaço para publicidade acima de suas coberturas, que na sua arquitetura sempre foram projetadas como áreas comuns a todos os moradores, o que baratearia (ou até poderia zerar) o valor do condomínio. Além de viabilizar a manutenção dos espaços de lazer que ofereciam, esses luminosos reforçavam o caráter de entretenimento de seus prédios: uma arquitetura mais de comunicação do que de espaço, concebida em ressonância com a cultura de massa, e não com um saber erudito. Os edifícios confundem-se com o brilho e a extravagância visual e chamativa dos neons, tornando-os pouco discerníveis a distância. Tornam-se, assim, prédios-faróis que, como anúncios luminosos (ora com, ora sem marcas a publicitar), brilham no cotidiano cinza da cidade.
Até os anos 1930 havia resistência em se morar em edifícios não apenas pela associação com os cortiços, mas também pelo medo de tragédias. 4Cf. DEBES, Ruy. Artacho Jurado: Arquitetura Proibida. São Paulo: Editora Senac, 2008. Artacho conquistava os compradores propondo nos térreos e nas coberturas dos projetos zonas de prazer e de ócio. Um condomínio-clube, acessível à classe média, que propiciasse algo além do apartamento simplesmente como espaço do cotidiano e da família. 5O cliente da Monções poderia também realizar festas em grandes salões no próprio local onde iria morar, espacialidade exclusiva, até então, para pessoas de elite, que as faziam na própria residência, ou nos clubes de que eram sócias. Os compradores de seus empreendimentos poderiam beneficiar-se dos modos de convivência nos parques (de onde a sua arquitetura começara) – o que geraria o apelido de “arquitetura disneylandia”, um dos termos usados para criticá-lo –, onde adultos e crianças poderiam brincar nas horas de descanso da vida moderna que se impunha à cidade. A moradia se aproximaria de um parque de diversões, promovendo a coletividade e o hedonismo. Assim como Denise Scott Brown, Robert Venturi e Steven Izenour descreveram que em Las Vegas o turista, em geral trabalhadores estadunidenses, pode imaginar por alguns dias que não é um caipira do oeste, mas um membro do jet set da Riviera, 6Cf. SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven. Learning from Las Vegas: the forgotten symbolism of architectural form. Cambridge: The MIT Press, 1977 [1972]. Trad. Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2003. os prédios de Artacho Jurado proporcionavam aos seus compradores, grande parte deles paulistas do interior do estado, a possibilidade de sonhar, mesmo diante da dureza da vida paulistana que se aguçava, que moravam em um infinito clube de veraneio.
Artacho não era amante de bebida e de jogo, talvez porque escutara histórias desde criança sobre seu avô, que havia perdido todo o dinheiro na Espanha por conta dos vícios. Segundo familiares, frequentava somente eventos sociais que influenciassem positivamente os negócios da Monções. Não foi o típico arquiteto playboy do século 20. Ademais, vendia seus prédios a um público que não era, a princípio, o típico bon-vivant. Todavia, criava modos de habitar que incorporavam diversos espaços para o desejo, o prazer e a fruição, para o trabalhador ascendente economicamente possível apenas nos dias de férias ou aos domingos, invertendo os paradigmas da cidade do trabalho e da disciplina, que então se constituía. 7Cf. PRECIADO, Paul. Pornotopia: arquitectura y sexualidad en “Playboy” durante la guerra fría. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010.
Compreendeu, nesse sentido, o imaginário sonhado de uma época, realizando desejos, sonhos e aspirações da classe média da época. 8Segundo familiares, para os modernos, o mais importante era o social, e para Artacho, era o indivíduo. De outro modo, em Learning from Las Vegas (op. cit.), os autores fazem uma defesa semelhante, corroborando o paralelismo entre o pós-modernismo e Artacho Jurado: “As incorporadoras constroem para os mercados, não para o Homem, e provavelmente causam menos dano do que o fariam os arquitetos autoritários, se estes tivessem o poder daquelas” (p. 155, tradução do autor). Para tanto, transformava seus prédios em grandes cenários dramáticos, como os de ópera ou de cinema. Quem morasse neles seria, mesmo que por ilusão da moldura, uma estrela. Um filme para ser vivido no cotidiano, como se cada dia fosse especial e nada banal, em que as ficções dos compradores poderiam se efetuar como realidade palpável. 9Os apartamentos com plantas menores, de um dormitório, como o Viadutos ou o Louvre, por exemplo, apresentam muitos elevadores e hall exclusivo para cada duas unidades, para dar a impressão de luxo e grandiosidade. Todavia, ao contrário do mercado imobiliário atual, que parece vender um sonho pelo marketing que se frustra quando é habitado, o modelo de incorporação de Artacho não era o da ampliação do lucro do incorporador em função da redução da qualidade dos espaços.
O uso elevado na quantidade e na variabilidade de adornos é central para criar o aspecto fantasioso e de intensa relação com a imagem e com a ilusão, produzindo, em suas edificações, o efeito de cenário com vocação cinematográfica. Ao mesmo tempo, os ornamentos desenhados por ele eram misturados, sem hierarquia ou discriminação, com itens disponibilizados pela indústria de construção, o que envolvia uns com as particularidades do outro. 10A família conta que Artacho projetou um banheiro com a louça de cor preta, inexistente no mercado na época. Pediu à empresa Celite que lançasse esta cor e, desde então, isso entrou em linha, sem necessidade da assinatura (ou patente) do construtor. Projetava, juntava e compunha todos os itens minuciosamente e, como um artesão, pouco os repetia, mesmo que citasse a si próprio, conectando os trabalhos a partir da imagem que os distinguiam na paisagem urbana. 11O que faz lembrar muito as características do trabalho de Antoni Gaudí.
Porém, não tratava sua produção no sentido de buscar uma carreira ou o reconhecimento de um artista-autor. Era um trabalho como qualquer outro, mas o fazia ser algo inesperado e aberto a outras referências por ele coladas nos projetos. Isso não poluía sua produção, tampouco a glorificava, mas dava-lhe o sentido da sua construção. Artacho compunha os prédios como uma colagem e acumulo de elementos, alterando o projeto durante a obra, a depender também da demanda dos clientes. O prédio surgia como o efeito menos previsível dessa operação. 12A curadoria de Rem Koolhaas para a 14ª Bienal de Arquitetura de Veneza (2014) evidenciou como os arquitetos e a crítica privilegiam a totalização dos projetos em detrimento de cada parte que o constituem: “O fato de que elementos mudam independentemente, de acordo com diferentes ciclos e economias, e por diferentes razões, torna cada projeto de arquitetura uma complexa colagem do arcaico com o atual, do padrão com o único, de suavidade mecânica [mechanical smoothness] com a bricolagem” (Cf. KOOLHAS, Rem. “Elements of architecture”. In: fundamentals catalogue, 14. Mostra Internazionale di Architettura. Veneza: Marsilio, 2014. Tradução do autor).
Os edifícios da Monções eram feitos para serem vistos de frente – ao fundo, nada de solidez construtiva ou verdade. “Para ele, não era importante a verdade estrutural, e sim o resultado plástico atingido”. 13LEME, Maria Eugenia França. Re-Conhecendo: Artacho Jurado. Trabalho Final de Graduação, FAU-USP. São Paulo, 1994. O projeto do Bretagne é paradigmático nesse sentido: a sua posição foi invertida em relação ao projeto inicial, privilegiando a vista (beleza) em detrimento do problema da insolação (aspecto técnico). O visual era privilegiado em detrimento da estrutura, – mesmo que tenham resistido mais ao tempo do que alguns ícones em concreto aparente da Escola Paulista – constituindo uma arquitetura do efeito, que provoca até hoje as mais diversas paixões.
Os prédios projetados por Artacho foram condenados por grande parte dos arquitetos paulistas, que o consideram decorativo, impreciso, cafona, kitsch e eclético. Eduardo Corona, professor da FAU-USP, foi o personagem mais crítico a Artacho e aos projetos da Monções. Publicou em 1958, na Revista Acrópole, um artigo intitulado “Que Audácia!”, criticando-o com bastante agressividade: “aberrações”; “exemplo do que não deve ser imitado”, “avesso da arquitetura contemporânea”, “errado de cima a baixo”. 14CORONA, Eduardo. Que audácia!. Revista Acrópole 232: 3. São Paulo, 1958. O IAB, pelo que consta, enrijeceu a obrigatoriedade do número de registro no CREA para as edificações por conta do sucesso da Monções, e chegou a pedir que tirassem o nome de Artacho da placa de fundação dos prédios. João era chamado por colunistas no jornal também de “trambiqueiro”, comentário que, segundo a família, se misturou com “aquele que fazia parques de diversão e se meteu a fazer prédio”. 15A humilhação a que a família passou depois da derrocada da empresa mistura tanto o fato de Artacho ser, em certa medida, um imigrante emergente e ter construído nos bairros da elite tradicional paulistana; como não ser arquiteto e ter tido uma carreira de sucesso de vendas no setor. Pais de colegas dos filhos de Aurélio na escola proibiam-nos de frequentar a casa dos Jurado, sobretudo depois que a Monções começou a ser alvo de ataques contra sua suposta idoneidade comercial; fato que, aí sim, aborreceu profundamente João. A família justifica essas ocorrências pelo ajuste das parcelas dos apartamentos segundo a inflação, que começava no país naquele momento. Segundo familiares, Artigas e Mendes da Rocha não gostavam de seus prédios. Mais recentemente, em 2008, o arquiteto Fernando Forte, sócio do escritório FGMF, escreveu sobre Artacho: “pseudo-modernismo desviando a atenção da arquitetura inovadora que vinha mudando a cultura do país (…) praticava uma arquitetura que provavelmente mais confundia o paulistano sobre o que era modernismo do que qualquer outra coisa”. 16Cf. FORTE, Fernando. Polêmico Artacho do Kitsch ao Cult. Revista aU, edição 174, setembro 2008.
Para a Arquitetura, a especialidade e a formação (seja ela mais ligada à engenharia ou à arte) são consideradas necessárias, isto é, uma tradição, supostamente, se reporta à outra e a justificação das escolhas é, especialmente depois do modernismo, científica, baseada nas técnicas construtivas e na própria história da disciplina. A intuição é ocasional e o ecletismo criticável. 17Para os modernos, o significado deveria ser transmitido por características inerentes à forma. A forma deve resultar da função, da estrutura e dos métodos de construção. Por outro lado, o exagero da estrutura e do programa podem ser considerados como o ornamento da arquitetura moderna. Na verdade, não se trata de uma crítica ao ornamento em si, mas a seu suposto mau gosto em relação às invenções estéticas dos modernos. Trata-se também de uma estratégia de diferenciação e apagamento de quem desrespeita tal estilo. A propósito, “eclético” é o modo com que a Arquitetura condena aquilo que foge aos seus preceitos, assim como os cientistas o fazem através das regras de demarcação dos experimentos e de seus autores,trata-se de uma estratégia semelhante de diferenciação, apagamento e exclusão. 18Cf. LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. La vie de laboratoire: La production des faits scientifiques. Paris: La Découverte, 1988 [1979]. Ao longo do século 20, a originalidade artística no Brasil esteve em tensão tanto com o passado “eclético” (considerado elitista e europeizado) quanto com o futuro “moderno” (também marcado pelos ensinamentos europeus, ainda que na tentativa de se integrar à construção de uma identidade artística nacional).
A arquitetura de Artacho não seguia o receituário estético das vanguardas arquitetônicas modernas. Afirmava a construção de ambientes nada sóbrios ou temperados, mas sim solares, brilhantes e antiassépticos; o contrário da sobriedade das casas de concreto que começavam a surgir na capital paulista. 19Artacho é contemporâneo, por exemplo, do arquiteto Gregori Warchavchik, que foi muito criticado pelo prefeito de São Paulo na época, Cristiano Stockler das Neves, também fundador da escola de arquitetura do Mackenzie, e que mais tarde iria se aproximar de Artacho. “Imagine-se o que será da Cidade Jardim se continuarem a aparecer as casas tumulares de cimento armado. Será inevitável a desvalorização desses terrenos, que mais parecerão o prolongamento do Araçá”. Em contrapartida, e em outro momento, disse que “Monções está pois de parabéns. Fez um edifício para o corpo e também para o espírito, e não apenas uma máquina de morar, que o materialismo inventou, que o mimetismo adotou, que o esnobismo fomentou” (DEBES, op. cit.). Criava-os a partir da pluralidade e da simultaneidade de referências. Uma gambiarra de estilos, imagens e informações heterogêneas e aplicadas de uma só vez, constituindo uma feição própria: mega-alegórica e maximalista; um cenário do excesso, lúdico e divertido, em síntese, vital. 20Há, porém, outros movimentos estéticos construídos no Brasil durante o século 20 que são marcados pela mistura, ignorando qualquer perspectiva de pureza, especialmente a Antropofagia e a Tropicália. Não se trata de afirmar que Artacho reconhecia-se profundamente com essa produção, mas que praticava intuitivamente muitos de seus preceitos.
O pout pouri ou a assemblage de Artacho se apropriava do próprio modernismo: marquises no topo de seus prédios foram provavelmente inspiradas por Pampulha, desenhada por Oscar Niemeyer, a frente do Louvre vem do edifício Prudência de Rino Levi, e a entrada do edifício Pacaembu do Cine Marabá, também de Levi. Todavia, se usava referências dos modernos de então, enfeitava-os com pastilhas e adornos coloridos – por isso, sua arquitetura era descrita popularmente a época como uma Casa da Barbie projetada por Niemeyer. Mas, ao invés de simplesmente imitá-los, fazia a seu modo, constituindo uma estética muito particular que não se enquadra em qualquer escola ou tradição.
Artacho não estava centrado em ser respeitado pela crítica e nem era imobilizado por conta disso; mas, por outro lado, competia pela mesma clientela dos arquitetos do período. Desejou que seus prédios fossem vistos como ícones das cidades, tratados por ele como potenciais pontos turísticos. Há relatos sobre ônibus de turismo, contratados pela Monções, que levavam interessados desde o edifício Bretagne à cidade de Santos, para conhecer suas obras na Baixada, o que revela que Jurado estava mais interessado na marca que iria ser deixada sobre o território das cidades do que na suposta necessidade de legitimação de seus pares e da crítica de seu tempo.
A história da família Artacho Jurado continua sendo escrita no presente, décadas depois do fechamento da Monções. Em 2016, foi realizada uma exposição intitulada “Edifício Planalto: 60 anos de cor em São Paulo”, em que foram expostos alguns desenhos originais de Artacho Jurado no hall do próprio edifício. Nota-se facilmente, rabiscado ao lado do desenho do projeto, agora emoldurado, números formando uma espécie de conta, provavelmente sobre a quantidade de apartamentos que poderiam ser vendidos naquele formato, isto é, para calcular a viabilidade comercial do empreendimento. Foram mostradas também uma mesa e duas poltronas com uma etiqueta “Atribuído a Artacho Jurado”. Os familiares de Artacho, presentes na abertura, não reconheceram os móveis, todos pareciam ver aquilo pela primeira vez.
No mesmo período, familiares contaram que foram chamados a uma reunião de condomínio no edifício Apracs com o objetivo de colher assinaturas para reconhecê-lo como um prédio assinado por Artacho Jurado. Por conta das dificuldades financeiras da Monções, que se acentuavam à época de sua construção, a obra foi finalizada pela família de Chiquinho Scarpa, cujo sobrenome invertido deu o nome ao prédio. Por enquanto, o prédio ainda não foi tombado como querem os proprietários, mas recebeu recentemente do Conpresp, órgão municipal de preservação, o Selo de Valor Cultural da Cidade de São Paulo.
Esse processo de legitimação do trabalho de Artacho contradiz a sua trajetória e traz novos elementos a ela mais de trinta anos depois de sua morte. Essas imagens e esses episódios recentes evidenciam que Artacho jamais imaginaria que um dia seus desenhos e móveis seriam expostos como a realização de um arquiteto, artista ou designer. Como se sabe, os prédios eram subscritos pela Construtora Monções, já que não lhe era permitido assiná-los formalmente. Como se sabe, o construtor sempre foi desprezado pelo seleto grupo de arquitetos modernos paulistas, e foi tornando secundária a necessidade de lhe pertencer, o que tampouco o inibiu de fazer os projetos como acreditava.
Ademais, não tinha preocupação em reproduzir sua criação. Cada empreendimento o estimulava a realizar desenhos absolutamente novos – os lustres talvez sejam a marca maior nesse sentido –, mas não os desenhava em busca de uma autoria sobre os objetos, muito menos para, eventualmente, serem reeditados. O prazer não estava no lustre (ou nos próprios edifícios) assinado e reproduzido, mas sim na realização de ver o que precisava ser construído e – por que não? – vendido rapidamente. A sua maior realização era, a cada novo empreendimento, projetar tudo de novo, e não revender à exaustão os mesmos objetos. Ou seja, não se sabe o que vinha antes: o desejo de vender ou o de desenhar.
Apesar de ter sido considerado excessivamente autoral, misturava coisas suas com a dos outros, sem preocupação alguma com uma assinatura que repercutisse no tempo. A cópia sempre lhe interessou mais do que o original, e o resultado final era absolutamente diferente daquilo que supostamente o inspirara. O que importava para ele era a poesia, e não o estilo poético. Tampouco viu necessidade de se constituir enquanto escola que pudesse validar a sua criação e ensiná-la para os outros.
É inócuo categorizá-lo hoje como modernista ou precursor do pós-modernismo. Artacho foi um construtor, não um arquiteto, absorvido mais pelas escolhas materiais e muito pouco afeito às ideias arquitetônicas que seu trabalho assumiria e despertaria. Um corajoso autodidata sem formação específica, que apostava em uma arquitetura de gosto peculiar, arriscando-se em um mercado de elevado risco. Protegeu-se o quanto pôde dos constrangimentos da crítica, dos acadêmicos, da sociedade paulistana e da revolução que as correntes arquitetônicas pregavam na Europa e, ainda que de forma rarefeita, na capital paulista. Não respeitou, nem desrespeitou, ou deu início a qualquer escola ou tradição. Misturava referências díspares, de monarquistas a modernistas, provavelmente com pouca clareza ou politização evidente sobre seus significados, mas personificadas por ele em edifícios-ícones, construídos em pleno capitalismo tardio de um país marcado pela mistura do novo com o velho, do tradicional e do estrangeiro, do tropical e do cosmopolita e, desde então, eternamente do futuro, o que torna seus prédios também atualíssimos e, além de tudo, simbólicos.


*
Este texto foi originalmente publicado no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em julho de 2021.
*
- 1Em outras imagens aparecem também os funcionários da Monções, todos os anos convidados, juntamente com suas famílias, para as festas de Natal, que muitas vezes ocorreram nas obras do edifício Louvre, com palhaços e músicos contratados e entrega de presentes para todos. Artacho manteve longas relações de confiança e amizade com os fornecedores que contratava, o que permitiria uma outra série de interpretações.
- 2Essas feiras deram início ao processo que resultou anos depois no Parque do Ibirapuera, com os Pavilhões que seriam desenhados pelo arquiteto Oscar Niemeyer.
- 3Os significados de suas decisões projetivas podem ser recompostos no presente: se estas decisões já foram consideradas simplesmente consequência do marketing de venda dos apartamentos, contrastadas com a defesa da função social da arquitetura, por exemplo, hoje elas podem ser contrapostas a certos problemas da arquitetura moderna, apenas percebidos no futuro. É preciso afastá-lo de qualquer preconcepção pejorativa (impreciso, errado, cafona; construtor de espaços sem ordem, mal dimensionados e picotados) ou valorativa (ícone, cult, desejado). Deve-se fugir da chave “gostar” ou “não gostar” da crítica de arte e arquitetura, e perceber esses prédios como agentes que merecem que pensemos juntos com eles. Ver: YANEVA, Albena. Mapping Controversies in Architecture. Surrey: Ashgate, 2012.
- 4Cf. DEBES, Ruy. Artacho Jurado: Arquitetura Proibida. São Paulo: Editora Senac, 2008.
- 5O cliente da Monções poderia também realizar festas em grandes salões no próprio local onde iria morar, espacialidade exclusiva, até então, para pessoas de elite, que as faziam na própria residência, ou nos clubes de que eram sócias.
- 6Cf. SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven. Learning from Las Vegas: the forgotten symbolism of architectural form. Cambridge: The MIT Press, 1977 [1972]. Trad. Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2003.
- 7Cf. PRECIADO, Paul. Pornotopia: arquitectura y sexualidad en “Playboy” durante la guerra fría. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010.
- 8Segundo familiares, para os modernos, o mais importante era o social, e para Artacho, era o indivíduo. De outro modo, em Learning from Las Vegas (op. cit.), os autores fazem uma defesa semelhante, corroborando o paralelismo entre o pós-modernismo e Artacho Jurado: “As incorporadoras constroem para os mercados, não para o Homem, e provavelmente causam menos dano do que o fariam os arquitetos autoritários, se estes tivessem o poder daquelas” (p. 155, tradução do autor).
- 9Os apartamentos com plantas menores, de um dormitório, como o Viadutos ou o Louvre, por exemplo, apresentam muitos elevadores e hall exclusivo para cada duas unidades, para dar a impressão de luxo e grandiosidade. Todavia, ao contrário do mercado imobiliário atual, que parece vender um sonho pelo marketing que se frustra quando é habitado, o modelo de incorporação de Artacho não era o da ampliação do lucro do incorporador em função da redução da qualidade dos espaços.
- 10A família conta que Artacho projetou um banheiro com a louça de cor preta, inexistente no mercado na época. Pediu à empresa Celite que lançasse esta cor e, desde então, isso entrou em linha, sem necessidade da assinatura (ou patente) do construtor.
- 11O que faz lembrar muito as características do trabalho de Antoni Gaudí.
- 12A curadoria de Rem Koolhaas para a 14ª Bienal de Arquitetura de Veneza (2014) evidenciou como os arquitetos e a crítica privilegiam a totalização dos projetos em detrimento de cada parte que o constituem: “O fato de que elementos mudam independentemente, de acordo com diferentes ciclos e economias, e por diferentes razões, torna cada projeto de arquitetura uma complexa colagem do arcaico com o atual, do padrão com o único, de suavidade mecânica [mechanical smoothness] com a bricolagem” (Cf. KOOLHAS, Rem. “Elements of architecture”. In: fundamentals catalogue, 14. Mostra Internazionale di Architettura. Veneza: Marsilio, 2014. Tradução do autor).
- 13LEME, Maria Eugenia França. Re-Conhecendo: Artacho Jurado. Trabalho Final de Graduação, FAU-USP. São Paulo, 1994.
- 14CORONA, Eduardo. Que audácia!. Revista Acrópole 232: 3. São Paulo, 1958.
- 15A humilhação a que a família passou depois da derrocada da empresa mistura tanto o fato de Artacho ser, em certa medida, um imigrante emergente e ter construído nos bairros da elite tradicional paulistana; como não ser arquiteto e ter tido uma carreira de sucesso de vendas no setor. Pais de colegas dos filhos de Aurélio na escola proibiam-nos de frequentar a casa dos Jurado, sobretudo depois que a Monções começou a ser alvo de ataques contra sua suposta idoneidade comercial; fato que, aí sim, aborreceu profundamente João. A família justifica essas ocorrências pelo ajuste das parcelas dos apartamentos segundo a inflação, que começava no país naquele momento.
- 16Cf. FORTE, Fernando. Polêmico Artacho do Kitsch ao Cult. Revista aU, edição 174, setembro 2008.
- 17Para os modernos, o significado deveria ser transmitido por características inerentes à forma. A forma deve resultar da função, da estrutura e dos métodos de construção. Por outro lado, o exagero da estrutura e do programa podem ser considerados como o ornamento da arquitetura moderna. Na verdade, não se trata de uma crítica ao ornamento em si, mas a seu suposto mau gosto em relação às invenções estéticas dos modernos. Trata-se também de uma estratégia de diferenciação e apagamento de quem desrespeita tal estilo.
- 18Cf. LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. La vie de laboratoire: La production des faits scientifiques. Paris: La Découverte, 1988 [1979].
- 19Artacho é contemporâneo, por exemplo, do arquiteto Gregori Warchavchik, que foi muito criticado pelo prefeito de São Paulo na época, Cristiano Stockler das Neves, também fundador da escola de arquitetura do Mackenzie, e que mais tarde iria se aproximar de Artacho. “Imagine-se o que será da Cidade Jardim se continuarem a aparecer as casas tumulares de cimento armado. Será inevitável a desvalorização desses terrenos, que mais parecerão o prolongamento do Araçá”. Em contrapartida, e em outro momento, disse que “Monções está pois de parabéns. Fez um edifício para o corpo e também para o espírito, e não apenas uma máquina de morar, que o materialismo inventou, que o mimetismo adotou, que o esnobismo fomentou” (DEBES, op. cit.).
- 20Há, porém, outros movimentos estéticos construídos no Brasil durante o século 20 que são marcados pela mistura, ignorando qualquer perspectiva de pureza, especialmente a Antropofagia e a Tropicália. Não se trata de afirmar que Artacho reconhecia-se profundamente com essa produção, mas que praticava intuitivamente muitos de seus preceitos.