Esse museu não é uma tradição,
é uma aventura.André Malraux, 1947
O museu mudou a nossa relação com a arte ao ser introduzido como intermediador entre o espectador e a obra. O papel do museu no acesso aos objetos artísticos foi determinante e fundou no indivíduo uma consciência sobre o próprio conceito de arte a partir de sua criação. Além disso, como comenta André Malraux, o museu tem o poder de metamorfosear os objetos, fazendo com que um crucifixo românico ganhe status de obra ao entrar nos seus domínios, livrando-se de sua primeira função. O museu, ao reunir as obras de arte e as colocar em confronto, põe em xeque toda a História da Arte, que, a partir dele, se reporta não apenas ao museu físico, mas também ao lugar mental construído por todas as obras de arte que já nos foram apresentadas.
Em sua gênese, predominava no museu a pintura a óleo, para a qual a conquista da terceira dimensão foi essencial. O que se continha dentro desse primeiro formato era, ainda de acordo com Malraux, a arte antiga, mais romana do que grega, a pintura italiana a partir de Rafael, os grandes flamengos, os grandes holandeses, os grandes espanhóis a partir de Ribera; os Franceses, a partir do século XVII; os Ingleses, a partir do século XVIII; Dürer e Holbein, um pouco à margem; e, mais à margem ainda, alguns primitivos.
O Museu do Louvre é o exemplo paradigmático, um dos primeiros museus fundados que carrega a responsabilidade histórica de condensar a passagem da coleção privada, restrita a pequenos círculos de determinadas classes sociais ao museu público. A sua forma de conservar e catalogar influencia todos os outros museus. Sejam eles de pintura a óleo tradicional, arte moderna ou arte contemporânea, todos estão em consonância com esse primeiro modelo museológico.
Há um Louvre na avenida São Luís em São Paulo; ou melhor, há uma simulação dele. Nesse cenário de museu, quase tudo está lá, inclusive a Mona Lisa, estrela de qualquer Louvre. Esse, é o edifício residencial de Artacho Jurado, projetado nos anos 50, no início da verticalização da cidade. Diversas implicações surgem dessa associação com o museu parisiense e vão se complexificando com a subdivisão semântica. Os quatros blocos da frente são designados por nomes de pintores: Da Vinci, Velázquez, Rembrandt e Renoir.
Essa operação constrói no imaginário da elite local um simulacro de valores culturais, mistura as noções de realeza, nobreza e burguesia, a fim de distinguir-se como classe dominante ilustrada. Nubla-se aristocracia e burguesia – o Louvre antes era a moradia da monarquia francesa, e no período da Revolução transformou-se em museu pelas mãos da nova liderança. Ao fazer uma fusão dessas duas conjunturas políticas, arquiteta um ideal europeu, seguindo a tendência hegemônica de consumir a cultura desse continente, especialmente a francesa.

O edifício Louvre contém um pequeno desfile da História da Arte. No hall de entrada de cada bloco há reproduções das obras do artista que o nomeia. Seguindo La Gioconda, há Dama com Arminho, As Meninas, Flores no Vaso, Isaac e Rebecca – A Noiva Judia. Uma escolha peculiar, visto que nem todas as reproduções das obras são do Museu do Louvre. Há dentro do Louvre de Artacho Jurado o Museu do Prado, o Museu Czartoryski, a National Gallery de Washington e o Rijksmuseum.

A princípio pode parecer um grande equívoco (os arquitetos modernos diriam que é mais um dos equívocos) de Artacho Jurado, mas suponhamos que essa escolha não seja um mero acaso… O prédio começa a ser construído em 1952 e será concluído em 1967, mesma época em que Malraux está começando o seu Museu Imaginário, 1Cf. MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa, Edições 70, 2011. Inicialmente publicado em 1947 e a versão revista e aumentada é publicada em 1965. uma sincronicidade que nos permite especular. Ao fazer a justaposição desses pintores, quadros, temporalidades e museus, podemos supor que Artacho Jurado entendeu o que Malraux quis dizer em:
Mas os nossos conhecimentos são mais extensos do que os nossos museus; o visitante do Louvre sabe que não encontra ali significativamente nem Goya, nem os grandes ingleses, nem a pintura de Michelangelo, nem Piero della Francesca, nem Grunewald; dificilmente Vermeer, onde a obra de arte não tem outra função senão a de ser obra de arte, numa época em que a exploração artística do mundo prossegue, a reunião de tantas obras-primas, e a ausência de tantas outras obras–primas, convoca, em imaginação, todas as obras-primas. Como poderia este possível mutilado não apelar para todo o possível? 2Cf. O museu imaginário, op. cit, p. 11.
O edifício Louvre funciona como este possível mutilado apelando para todo o possível. Ele provoca uma decomposição das barreiras de tempo e espaço, além de entender o papel do Museu do Louvre, colocado como símbolo da grandeza da arte, acessível e exposta aos olhos do mundo. Ele compreende sua função de metonímia museal, convocando todas as obras de arte e todos os espaços institucionais da arte. Faz do Louvre uma ilha que conduz os espectadores a todos os Louvres.
Suponhamos então que a escolha desses pintores europeus não seja aleatória; eles são o Museu Imaginário que habita o edifício Louvre. Sabe-se que é impossível um Museu Imaginário real e de caráter coletivo devido ao fato dele ser um lugar mental, espaço fictício que não tem limites por conter as obras de arte que habitam o imaginário de cada indivíduo com a liberdade de escapar ao mundo histórico. Por esse motivo não podemos afirmar que o edifício Louvre é um Museu Imaginário, mas podemos supor que o edifício Louvre é habitado por um.
O Museu Imaginário aprofunda ao máximo o incompleto confronto imposto pelos verdadeiros museus, as reproduções têm papel fundamental nesse procedimento por aproximar obras geograficamente distantes ou inacessíveis. É possível ter acesso à elas através fotografias, gravuras, bibliotecas; e, conforme a conjugação de novas formas de conhecimento aumenta, o que pode caber nesse lugar mental é alterado e expandido. A reprodução sugere uma hierarquia diferente, evocando a obra-prima e não rivalizando com ela. Dessa maneira surge, à margem do museu, o mais vasto domínio artístico que o homem conheceu.
A escolha de Da Vinci, Velázquez, Rembrandt e Renoir no suposto Museu Imaginário, anunciam um arquétipo de História da Arte projetando um alicerce do ideal do que é arte: todos são quadros de cavalete, todos são pintura a óleo, todos retratam a natureza com paridade com a realidade. Bem ao gosto do século XVIII, em que um quadro devia seu valor essencialmente à projeção, no imaginário, das formas que figurava. O que era prezado era a semelhança; e desejava-se que aquilo que fosse representado pudesse encontrar seu par no mundo real. Reitera, portanto, a gênese do museu em que o que é reconhecido como arte é a grande pintura a óleo da Europa, que prolonga o século XVI.
Nessa empreitada de Museu Imaginário, o edifício Louvre compreende duas linhas de frente, a primeira é a possibilidade da criação de um lugar mental que armazena as obras de arte para além dos limites físicos do museu. A segunda é que desde o surgimento da instituição-museu, ela pauta a História da Arte. Por isso propõe um raciocínio para um possível rastro de história da arte ao escolher esses quatro artistas protegidos pela designação Louvre.
A começar por Leonardo da Vinci, o ponto alto da tentativa que vinha sendo empreendida do século XI ao XVI na Europa de libertar-se cada vez mais da expressão reduzida a duas dimensões. Da Vinci é a personificação da Renascença, ele criou e sistematizou um espaço que nunca fora visto antes na Europa, fundou as bases da ilusão espacial, da profundidade, perspectiva, do sfumato, do escorço e do claro-escuro. Por isso, a escolha por Da Vinci é tão representativa, é o pintor que estabeleceu as bases e generalizou a pintura a óleo a partir da Alta Renascença do século XVI.
O edifício Louvre segue com dois representantes do século XVII: Velázquez e Rembrandt, que produzem em realidades sociopolíticas bastante diferentes. Ao confrontar esses dois pintores, é confrontada também a Europa católica do sul e a Europa protestante do norte pelo que elas representaram para a História da Arte. Essa diferença causa um profundo impacto na pintura, pois na parte católica os artistas produzem para a Igreja, príncipes e reis, pinturas glorificando o seu poder. Na parte protestante o estilo barroco cheio de pompa não será aceito pelos burgueses holandeses que primam pela sobriedade. Porém ambos bebem na tradição oficializada por Leonardo da Vinci, a obra-prima era julgada em função do italianismo renascentista para poder ser admitida na Academia da Eternidade.
Rembrandt, na Europa protestante, vai captar o fugidio e o comum, não há vestígio de posse ou vaidade. Os tons escuros, a luz e a sombra darão mais valor à verdade e à sinceridade do que à harmonia e à beleza. A pintura holandesa concentra-se em retratos, pois muitas encomendas vinham de mercadores bem-sucedidos, vereadores, burgomestres, comissões locais e juntas administrativas. É o começo do domínio do direito do artista de declarar uma obra acabada quando tivesse atingido o seu próprio objetivo, como defendia o pintor.
Velázquez, por sua vez, faz parte da corte do rei Filipe IV em Madri e sua função era pintar os quadros do rei e da família real. A textura e a cor dos quadros na Europa católica são completamente diferentes, pois tinham a função de anunciar a origem aristocrática e majestosa dos retratados. Sua aceitação marca uma conciliação da arte espanhola com o italianismo veneziano.
Já a arte moderna vai destruir a sombra de Velázquez que começa com Da Vinci. Por esse motivo, Malraux a coloca como adversária do museu tradicional, pois ela renega uma beleza do que se julgava a herança grega, da obra que tentava aproximar-se de uma representação ideal, do quadro que a imaginação não podia aperfeiçoar, desafiando a estética onipotente. O que muda com a arte moderna é um interesse especificamente pictural, manchas e cores em movimento no lugar dos castanhos e vernizes. Ao invés de estar em função da natureza, a pintura está em função da própria pintura, portanto, inverte-se a relação entre objeto e quadro.
O representante da arte moderna do Louvre da São Luís é Renoir. O edifício compreende a absorção dessa estética pelo museu e a impossibilidade de opor esses dois elementos. Escolher Renoir é bastante esperto, em vida o artista tem a sua obra reconhecida, vira herói nacional e tem uma grande exposição no Museu do Louvre. Assim a admissão da estética moderna vai abrindo espaço dentro do museu.

Apesar da arte moderna estar interessada nas cores, ainda há uma referência em comum com a estética tradicional que é a exploração da natureza. Renoir é o impressionista que mais fica preso a uma representação semelhante do mundo. O Museu Imaginário que habita o edifício Louvre se circunscreve num lugar confortável da História da Arte ao se projetar na realidade sobre as bases do museu e da estética tradicional europeia, conservadora e atrelada à natureza.
Entretanto, ele evoca uma problemática e estrutura um futuro possível. Ao tornar-se essa espécie de Museu Imaginário, ele nos interroga sobre o que pode caber no museu. Funciona como um ready-made de museu, objeto deslocado de seu contexto. Um Louvre na América do Sul, precursor da ideia de franquia dos museus globais. Um Louvre pronto para o uso que brinca com a noção de público e privado, com a noção de História da Arte oficial, que mexe com o imaginário do que é ilustração, ousado o suficiente para ter sua fachada rosa e azul. Introduz o comércio em suas dependências e guarda a pirâmide dentro de uma agência de viagem. Um museu que foi achado já quebrando a unicidade da obra de arte e retirando-a de seu contexto.
Prosseguindo a metamorfose do Museu Imaginário, funde-se ao Louvre o museu do louvre pau-brazyl, que emerge dessa engrenagem para justamente fazê-la funcionar de outra forma, para refletir sobre esse espaço específico, o edifício Louvre, e também sobre a própria obra de Artacho Jurado. “Somos tanto mais sensíveis à fluidez do passado, quanto aprendemos que toda a arte modifica, só pela sua criação, as antecessoras. Rembrandt não é exatamente, segundo Van Gogh, o mesmo que era segundo Delacroix.” como afirma Malraux. Então continuamos a exploração artística, aproveitando o caminho aberto por Renoir no Louvre, estendemos o coro de temporalidades e encerramos o primado da natureza.
O museu era uma afirmação, o Museu Imaginário é uma interrogação, o museu do louvre pau-brazyl é uma aventura.
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Este texto foi originalmente publicado no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em junho de 2021.
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- 1Cf. MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa, Edições 70, 2011. Inicialmente publicado em 1947 e a versão revista e aumentada é publicada em 1965.
- 2Cf. O museu imaginário, op. cit, p. 11.