mostrar, narrar, vender e convencer: a invenção de táticas de display

Alguns textos que tratam das histórias das exposições costumam colocar como marco zero para a constituição de narrativas desse campo as iniciativas em torno do Salão dos Recusados (1863), em Paris. 1Cf. ALTSHULER, Bruce. Salon to Biennial 1863-1959. Exhibitions that Made Art History, vol. 1. Londres: Phaidon, 2008. A narrativa também está presente em CASTILLO, Sonia Salcedo del. Cenário da arquitetura da arte: montagens e espaços de exposições. São Paulo: Martins, 2008. Como contraponto aos Salões da Academia Real de Pintura e Escultura francesa, artistas como Courbet e Manet, além do grupo impressionista francês, buscavam mostrar seus trabalhos de forma qualificada e, ao mesmo tempo, fora das categorias artísticas estabelecidas pela Academia. Uma das críticas dos Impressionistas aos Salões era de que a disposição das obras, espalhadas por uma mesma parede, não permitia aos visitantes a devida apreciação. Assim, os Impressionistas, em suas exposições, não apenas mostravam de forma particular cada trabalho, mas, quando capitaneados pelos marchands, também os exibiam em galerias que simulavam o ambiente doméstico, entre mobílias e outras peças, de forma a estimular o comprador, que visualizava a instalação da peça em seu (possível) futuro reduto.

Essa narrativa, bastante consolidada, pode ser recuada um pouco mais no tempo, incorporando a própria instituição que promoveu os Salões Acadêmicos, o Museu do Louvre, protagonista na institucionalização dos museus, tais como os conhecemos nos dias de hoje. A partir de iniciativas dos revolucionários franceses, foram criados os dispositivos legais e técnicos para a compreensão de museus como protetores dos patrimônios das nações. 2Cf. JULIÃO, Letícia. “Apontamentos sobre a história do museu” In: Caderno de diretrizes museológicas. Brasília: Ministério da Cultura/ Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/ Superintendência de Museus. 2006. pp.19-32. A abertura do Museu do Louvre, em 1793, se deu após o confisco do edifício e da coleção real, transformados em propriedade do povo francês. A organização das obras nas galerias seguiria um sistema cronológico que levaria em conta os supostos estilos e os países de origem das obras, articulando, assim, linearidade progressiva e identidade nacional. 3BIRKETT, Whitney. To Infinity and Beyond: A Critique of the Aesthetic White Cube. New Jersey: Theses Setton Hall University, 2012. P.9.

Essa articulação é ponto de origem do museu moderno, estudada em profundidade em The Birth of the Museum (1995), por Tony Bennett. 4BENNETT, Tony. The Birth of the Museum. History, Theory, Politics. London and New York: Routledge, 1995. Segundo o autor, algumas pesquisas mostram a história dos museus – não apenas os de arte – a partir das práticas de organização classificatórias e de disposição dos objetos, isto é, de um ponto de vista interno à sua própria história e como parte de seu aprimoramento classificatório e técnico. O propósito de Bennett, em contrapartida, é verificá-la a partir de uma perspectiva política, expandindo e cruzando narrativas. Isso permite, para estudos históricos com foco em exposições, demonstrar as zonas de atrito entre versões, os aspectos obscuros nos quais o narrador e suas hipóteses não são suficientemente comprováveis e, por fim, colaborar para colocar em xeque o estabelecido, o cristalizado e o hegemônico.

O museu, para Bennett, tem a mesma origem de outras instituições que, no século XVIII, foram organizadas a partir de uma orientação racionalista, como bibliotecas e parques públicos; assim como se assemelham às iniciativas das Exposições Universais e feiras modernas, caracterizadas pelo autor por suas práticas de “mostrar & narrar”, e por serem lugares de “mostrar artefatos e/ou pessoas de maneira calculada ao encarnar e comunicar significados e valores culturais específicos”.

Essas instituições também teriam, segundo ele, a preocupação de inventar maneiras de condução e de coordenação do comportamento dos visitantes por meio da arquitetura e dos dispositivos de ordenação do fluxo. Essa caracterização certamente não se restringe aos museus, mas a todas as atividades nas quais a multidão participante pode rapidamente se tornar perigosa e, por exemplo, iniciar uma festividade carnavalesca, ou pior, um motim. Assim, estações, lojas de departamentos, parques –lugares nos quais circulava grande número de pessoas– desenvolveram preceitos comportamentais e adequações tecnológicas para impedir possíveis insurreições. Necessário lembrar que, nesse instante, estão no imaginário das sociedades europeias, principalmente de seus governantes, as manifestações populares que ultrapassavam, desde a Revolução Francesa, os limites impostos pela religião ou pelo direito dos reis.

Prescrições e tecnologias seriam compartilhadas por esses espaços de “mostrar & narrar”, e formariam, na expressão de Bennett, um “complexo exibicionário”, semelhante às formulações de Michel Foucault sobre o complexo carcerário. 5FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da Prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2000. Segundo Bennett, é possível verificar a passagem da organização dos objetos e corpos do domínio fechado e privado para o espaço público, que serviriam tanto para esse controle das multidões, quanto para a inscrição e transmissão de mensagens de saber e poder. 6Cf. BENNETT, p.61. Como exemplo privilegiado dessa situação, o autor cita a Exposição de Londres, em 1851, na qual foi apresentado

(…) um conjunto de disciplinas e técnicas de visualização desenvolvidas anteriormente em museus, panoramas, exposições dos institutos de mecânica, galerias de arte, arcadas. Ao fazê-lo, traduziu em formas expositivas que, simultaneamente, ordenavam objetos para a inspeção do público e ordenava o próprio público que os inspecionava, e que tiveram uma influência profunda e duradoura no desenvolvimento de museus, galerias de arte, exposições e lojas de departamento. 7Idem, p. 61

Foi essa a exposição que demonstrou, segundo Bennett, que a ameaça da multidão poderia ser contornada pelos dispositivos de organização visual e pelo apelo pedagógico de uma perspectiva do capital. Durante sua organização, houve uma preocupação da imprensa com o convívio de classes em um mesmo espaço público, algo que foi resolvido pela diferenciação de preços em diferentes dias da semana, o que impediria aquele confronto. As Exposições Universais do século XIX serviram para constituir um amálgama no qual a visibilidade fosse elaborada e exercida em um fim didático, comercial e ideológico: mostrar, narrar, vender e convencer.

As assertivas de Bennett desenham um outro campo no qual histórias de exposições, ou histórias da arte, se dilatam para além da disposição de trabalhos em espaços arquitetônicos e institucionais e abarcam projetos ideológicos de grande amplitude, em um trânsito entre perspectivas micro e macro. Muito próximo do que Pablo Lafuente define como display:

(…) o aspecto essencial do meio –exposições– é o display. Por display, não me refiro ao exercício de seleção, nem à questão de quem tomou as decisões sobre aquela seleção e foi o autor do quadro conceitual, mas à articulação efetiva de um conjunto específico de relações entre objetos, pessoas, ideias e estruturas, dentro de um formato expositivo. O display, e os princípios que regem sua articulação, propõe um discurso que está, por vezes, em desacordo com o discurso que cerca a exposição. Apenas abordando os dois conjuntamente é que podemos ter uma posição sobre a história da exposição a partir dessa luta de identidade. 8LAFUENTE, Pablo. “Introduction: From the Outside In – ‘Magiciens de La Terre’ and Two Histories of Exhibitions”. In: STEEDS, Lucy, et al. Making Art Global (Part 2): ‘Magiciens de la Terre’ 1989. Londres: Afterall Books (Exhibition Histories), 2012. Tradução livre.

Na afirmação de Lafuente está implícito que, a cada display  visitado, há a ativação de um complexo de noções: arte, exposição, visitante, sociedade. Portanto, o ponto de origem das histórias das exposições modernas é também aquele que marca os processos de instrumentalização da produção cultural aliada à gestão governamental do comportamento social. Nesse sentido, a regulação dos comportamentos elaborados e adestrados nos espaços públicos abarcaria lugares impensáveis à primeira vista, como os parques de diversões, esfera dos prazeres ilícitos e, ao mesmo tempo, de maravilhamento do visitante diante da tecnologia industrial à serviço do tempo livre. 9Cf. BENNETT, p.6.

O display pode atuar, então, nas exposições contemporâneas, tanto na continuidade dessas instrumentalizações da produção artística engendradas em políticas macro, quanto na possibilidade tática de criar dissonâncias e desobediências às normas disciplinadoras de comportamento social.

*

Este texto foi publicado originalmente no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em junho de 2021.

*

  • 1
    Cf. ALTSHULER, Bruce. Salon to Biennial 1863-1959. Exhibitions that Made Art History, vol. 1. Londres: Phaidon, 2008. A narrativa também está presente em CASTILLO, Sonia Salcedo del. Cenário da arquitetura da arte: montagens e espaços de exposições. São Paulo: Martins, 2008.
  • 2
    Cf. JULIÃO, Letícia. “Apontamentos sobre a história do museu” In: Caderno de diretrizes museológicas. Brasília: Ministério da Cultura/ Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/ Superintendência de Museus. 2006. pp.19-32.
  • 3
    BIRKETT, Whitney. To Infinity and Beyond: A Critique of the Aesthetic White Cube. New Jersey: Theses Setton Hall University, 2012. P.9.
  • 4
    BENNETT, Tony. The Birth of the Museum. History, Theory, Politics. London and New York: Routledge, 1995.
  • 5
    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da Prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2000.
  • 6
    Cf. BENNETT, p.61.
  • 7
    Idem, p. 61
  • 8
    LAFUENTE, Pablo. “Introduction: From the Outside In – ‘Magiciens de La Terre’ and Two Histories of Exhibitions”. In: STEEDS, Lucy, et al. Making Art Global (Part 2): ‘Magiciens de la Terre’ 1989. Londres: Afterall Books (Exhibition Histories), 2012. Tradução livre.
  • 9
    Cf. BENNETT, p.6.

/