Louvre e louvre

Em 1933, o filósofo Walter Benjamin escreveu que os processos de reprodutibilidade técnica serviriam para retirar o caráter de aura das obras de arte. Assim, ter uma célebre obra, como a Mona Lisa, presente em livros e reproduções diversas, seria uma maneira de livrar a pintura de seu lugar sacralizado e torná-la mais acessível ao público. Quase cem anos depois, verifica-se justamente o oposto: mais do que nunca turistas de diversas regiões se apinham nas galerias de grandes museus mundo afora para apreciar as obras de mestres do passado e de artistas contemporâneos. A despeito de sua grande disponibilidade na cultura por meio de sofisticadas formas de reprodução, mais do que nunca as obras de arte são vistas como objetos a serem cultuados, como se as reproduções tivessem somente contribuído para reforçar ainda mais a aura de tais objetos.

O caráter sacralizado das obras de arte, entretanto, não é algo conferido somente pela reprodução. Na prática, os próprios museus, à medida em que crescem em importância em relação às obras, contribuem para reforçar tal característica, como verdadeiros templos para os quais peregrinos de diversas partes do mundo migram em busca de objetos aclamados pela cultura. Se por um lado, museus com coleções sólidas e de importância histórica desempenham naturalmente este papel, por outro, nas últimas décadas, surge um novo tipo de museu, como uma espécie de cartão postal em si, no mais das vezes sediado em prédios sofisticados projetados por arquitetos renomados, ou associado a um projeto urbanístico inovador, sem necessariamente ter obras significativas para apresentar.

O Museu do Louvre (Paris), tema deste ensaio, encarna essa duplicidade de modo exemplar – já que tem uma coleção com as obras mais icônicas da história – como a própria Mona Lisa – e também, sobretudo nos anos recentes, desponta como uma marca em si e importante centro de consumo. Sob o argumento – legítimo diga-se – de expandir o espaço para expor sua coleção, desde 2004, o Louvre iniciou um processo de expansão com duas novas grandes filiais. Uma delas, inaugurada em 2012, em Lens, ao norte de Paris, que deslocou da capital, obras como a da importância da “Liberdade Guiando o Povo” de Delacroix. A outra, o Louvre Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, prevista para 2014, mas ainda não inaugurada, que até agora custou mais de 100 milhões de euros, gerou grande polêmica no que concerne ao seu caráter de investimento meramente turístico como resultado de um acordo entre o governo francês e o governo dos Emirados Árabes Unidos. O projeto, assinado pelo arquiteto Jean Nouvel, faz parte de um complexo cultural no qual também está presente o Guggenheim Abu Dhabi, em uma ilha construída para ser um centro  cultural e turístico, em um país que ainda luta para melhorar sua visibilidade no ocidente, sobretudo por causa de questões básicas ligadas aos direitos humanos.

A expansão para o oriente dá novos horizontes ao caráter de grande centro de consumo do Museu, já que se desloca aos novos potenciais mercados, sem que os turistas precisem viajar a Paris. Essa faceta, contudo, não é exclusiva do século XXI. Desde 1993, a sede do Louvre em Paris divide espaço com o complexo comercial conhecido como Carroussel du Louvre, um verdadeiro shopping center dentro do Museu, ocupando um espaço que poderia servir, por exemplo, para exposições e atividades institucionais. Curiosamente, o Carroussel sedia a primeira Apple Store da França, inaugurada em 2009 e capaz de arregimentar filas, no lançamento dos novos gadjets da empresa, que rivalizam com aquelas formadas pelos turistas para ver a Mona Lisa e a Vênus de Milo. De modo similar, no ano passado, o Museu instalou em uma de suas salas de exposição uma nova loja de lembranças. Para isso, foi necessário retirar algumas obras de grande valor, como “A Barca” de Charles Gleyre (tão bem analisada por Monteiro Lobato em sua correspondência). Ficam os bibelôs, esconde-se a obra.

Esse Louvre do século XXI, ganha seus principais contornos com o projeto Grand Louvre de François Mitterrand, de 1983, que de uma vez por todas tirou a burocracia pública do complexo do Louvre e teve como característica marcante a construção da polêmica pirâmide de vidro de mais de 21 metros de altura e 95 toneladas, concebida pelo arquiteto sino-americano Ieoh Ming Pei. Mas até que se tornasse um grande templo de cultura e de consumo, o Museu do Louvre percorreu um longo caminho: inicialmente uma fortaleza fundada por Felipe II, serviu de morada à família real francesa, até que Luís XIV transferisse sua família e toda a corte para Versalhes. Podemos, por exemplo, ver o Louvre como um dos palcos centrais de “Os três mosqueteiros”, de Alexandre Dumas, como morada do rei e local de trabalho onde d’Artagnan e seus três companheiros buscavam as missões e ficavam cientes das intrigas políticas que acabariam por resolver.

E é justamente como morada da corte francesa que o acervo do futuro museu começa a ser construído. Naturalmente, a coleção dos monarcas franceses era uma das mais ricas e importantes de toda a Europa: por exemplo, a Mona Lisa chega à França, em 1515, quando Leonardo vai trabalhar para Francisco I, grande mecenas de sua época, que construiu um dos palácios do atual complexo do Louvre. Mas a transformação da antiga morada da família real em museu só começa com a transformação realizada por Luís XIV, em 1692, da antiga Sala das Cariátides em uma galeria de esculturas, momento em que palácio também passa a sediar a Academia de Belas Artes francesa.

A Academia de Belas Artes passou a ser também a instituição central no estabelecimento do cânone artístico que só seria abandonado no século XIX, com o início dos movimentos ligados à arte moderna. A relação íntima da academia com o Louvre é atestada na principal exposição acadêmica, o Salão, famoso no século XIX por excluir pintores ao gosto de um júri politicamente articulado e excludente, cujo nome vem justamente do salon carré, nome de uma das principais salas do Museu. No século XIX, quando as dissidências com a tradição acadêmica passam a crescer exponencialmente, a academia figura como uma instituição do antigo regime inadequada para o mundo que se desenhava. Ainda assim, o Louvre enquanto museu permaneceu sólido como instituição. Renoir, por exemplo, a despeito do caráter contestatório que o impressionismo vinha mostrando, desejava ter suas obras expostas no Louvre, o que conseguiu apenas ao final de sua vida.

Apesar da contestação, a academia francesa manteve-se forte até, pelo menos, o início do século XX e sua força teve efeitos para além do território francês. Pintores de diferentes regiões da Europa se reuniam em Paris para ter acesso à arte praticada a partir das prescrições da academia francesa. Naturalmente, tal influência também se fez sentir deste lado do Atlântico, já que arte acadêmica praticada no Brasil durante o século XIX esteve fortemente ligada aos princípios acadêmicos irradiados pela instituição francesa sediada no Louvre. Almeida Júnior, por exemplo, foi custeado pessoalmente por Dom Pedro II para estudar em Paris, onde foi discípulo de ninguém menos do que Alexander Cabanel, o que contraria o credo modernista de que o pintor de Itu seria um pintor de província e interiorano e, portanto, genuinamente brasileiro. Pedro Américo e Victor Meirelles, nossos maiores pintores de história, seguiam o estilo de pintar preconizado pelo neoclassicismo de Jacques Louis-David, ao retratar os grandes temas da história brasileira como “A batalha do Avaí” ou o “Grito do Ipiranga”.

É também em suas temporadas de estudos na academia que alguns pintores brasileiros passam a incorporar princípios ligados aos movimentos modernistas, como o impressionismo, ainda que tardiamente, quando tais movimentos já haviam perdido parte de sua efervescência de vanguarda, e de modo muito particular, em obras de nomes como Belmiro de Almeida e Eliseu Visconti. O próprio impressionismo chega ao Brasil como escola, e, portanto, desprovido de seu caráter inovador e antiacadêmico. Já chega por aqui como algo aceito, nos anos de 1930, na obra de artistas como Georgina de Albuquerque, quando nomes ligados ao grupo de 1922 já figuravam como vanguarda oficial da modernidade brasileira, inspirados por movimentos como o expressionismo e o cubismo.

Dessa maneira muito particular, tanto as tendências artísticas, quanto as ideias vindas da Europa, chegaram ao Brasil em uma mistura específica que escapa às prescrições de qualquer manifesto ligado ao modernismo paulista. Suas características podem ser encontradas não nos movimentos modernistas da juventude aristocrática paulistana, mas na compreensão dos entraves ao desenvolvimento do Brasil. Nos anos de 1950, Celso Furtado identificou a modernização dos padrões de consumo das classes dominantes como característica fundamental do subdesenvolvimento. Desse modo, haveria um desejo da elite econômica e cultural, no Brasil, de se assemelhar, tanto do ponto de vista do consumo, quanto do ponto de vista da cultura, ao modo de vida europeu. Tal modo de vida, naturalmente, não seria extensível para toda a população, e mantê-lo para um pequeno grupo significaria manter a maioria da população em condições precárias.

Esse espírito parece muito bem refletido no prédio de Artacho Jurado, o outro louvre deste ensaio, que teve sua construção iniciada na década de 1950. Destoante do cenário arquitetônico da época, Artacho possuía um estilo singular que mesclava elementos do modernismo com características pessoais; dono de uma construtora que buscava bons negócios e não inserido em uma escola de arquitetura na qual pretensões filosóficas e sociais parecem ter mais importância do que os próprios edifícios. Um prédio de Artacho é uma espécie de um mundo à parte no qual nossos olhos podem se perder e descobrir uma infinidade de pequenos detalhes de personalidade acentuada e formas inesperadas, que tanto individualmente, quanto articuladas no todo, parecem ter uma aura de encantamento que a pura austeridade do concreto armado, hegemônica na arquitetura de então, jamais poderia ter. O louvre de Artacho também está repleto de referências ao museu francês, em um sincretismo kitsch no qual Rembrandt, Renoir, Leonardo, Velázquez e Pedro Américo dividem espaço como representantes do mundo da arte e da sofisticação com o qual o prédio parece buscar estar associado.

A elite que teria acesso aos apartamentos do louvre buscava um vínculo com esse mundo de distinção e sofisticação que a arte traz; e que no Brasil, tanto na década de 50 quanto nos dias de hoje, está impregnado de ares segregacionistas, já que são poucos os que podem deixar o país para ter acesso a esses bens culturais. Naturalmente, estar relacionado ao mundo da arte – visto como um todo sincrético a despeito das particularidades e oposições pertinentes à sucessão de estilos – funciona como um monopólio de classe, que ajuda a delimitar a fronteira entre a massa desfavorecida e a elite com acesso à cultura vinda do exterior. Isso mostra, ao mesmo tempo, um desejo de se aproximar de um mundo superior e distante da realidade brasileira, e uma ingenuidade em relação ao seu conteúdo como se morar em um prédio elegante com nome de museu fosse alguma espécie de legitimador cultural de posição.

Quem passa pela avenida São Luís, no centro de São Paulo, pode facilmente constatar o descompasso entre os mundos dos dois Louvres. O francês, mais do que nunca, representante dos espaços tradicionais de exibição de obras de arte – que se expandem mundo afora, como templos do turismo e do consumo de luxo –, e o de Artacho, genuíno vestígio do incompleto projeto de modernização brasileira. Uma exposição que confronte esses dois mundos, realizada fora dos espaços tradicionais de exibição é, em si, uma reflexão a respeito do papel que os museus assumem no mundo contemporâneo e dos descaminhos da arte em uma sociedade que ainda luta para superar os problemas do subdesenvolvimento.

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Este texto foi originalmente publicado no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em junho de 2021.

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