Muita gente circula pelo edifício Louvre para morar, visitar, trabalhar, comprar, vender. Dentro dessa rotina acontece o museu do louvre pau-brazyl. Pensar no sentido dos trabalhos aqui implica, portanto, em pensá-los em um espaço e um tempo distinto da maioria das exposições. É um mundo onde são vividas temporalidades e expectativas distintas daquelas que são próprias dos espaços concebidos para expor obras de arte desde a modernidade. A rotina desse edifício é a rotina residencial e do comércio de galerias do centro de São Paulo e é nesse espaço da vida cotidiana que acontece esse museu particular.
Parte do centro da cidade, é um espaço que nos obriga a viver de uma forma particular. Não é um ambiente concebido para uma vida contemplativa, é um mundo que nos empurra para a velocidade. Para tratar dessa questão, o sociólogo Zygmunt Bauman curiosamente compara a vida que levamos com patinação no gelo fino. Sempre em movimento, vivemos como se nossa segurança dependesse de nossa velocidade. Tentamos viver cada vez mais rápido e, “estando entre os corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se”. 1Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Zahar, 2001, pp. 329. Essa velocidade é uma consequência do fluxo de estímulos a que somos submetidos.
Saturada de informações que se apresentam sob a forma de sons, desenhos, fotografias, vídeos e ilustrações, a vida na cidade não nos permite prestar atenção naquilo que experimentamos, e provoca confusão entre tantas imagens que desaparecem e são substituídas antes que as possamos perceber. Nessa profusão de estímulos, tudo parece se apresentar e se esvair simultaneamente.
Alguns trabalhos dessa exposição conversam com esse aspecto da realidade circundante saturada de imagens incessantemente reproduzidas, que acabam perdendo seu significado e se transformando em simples veículos publicitários. A obra que Pazé apresenta nessa exposição nos faz pensar nessas questões. Com o título de A coleção, Pazé apresenta imagens reproduzidas e montadas como uma única e grande ilustração. Mas suas imagens não são as fotos dos produtos de consumo que a publicidade nos empurra, são reproduções de grandes pinturas da história da arte, mercadorias que não circulam no mercado de consumo de massa. A primeira sensação é de que as obras primas perdem sua importância e sua individualidade em uma grande imagem que se confunde, sem a atenção consciente do espectador, com a linguagem de uma peça publicitária corriqueira e escandalosa.
Voltando à Modernidade Líquida, o sociólogo afirma que a velocidade, no entanto, não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, ‘tomar seu tempo’, recapitular os passos já dados, examinar mais de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado”. 2Idem.
Esse pensamento que demanda a pausa e o descanso não parece encontrar lugar em meio ao excesso de estímulos que a vida paulistana nos oferece. Um exercício de fruição estética nos espaços das galerias do edifício Louvre pareceria prejudicado por esse aspecto.
Por isso, a maioria das salas de exposição são projetadas sob os mesmos princípios. São concebidas para eliminar as interferências, tirando a arte do espaço e do tempo cotidianos. E essa tendência acaba por resultar, ao longo da modernidade, na concepção ideal do espaço expositivo como o volume interno de um cubo branco. Nesse lugar, conforme O’Doherty, “o mundo exterior não deve entrar, então as janelas frequentemente são lacradas. As paredes são pintadas de branco. O teto se torna a fonte de luz. (…) A arte é livre, como se costumava dizer, assume sua própria vida”. 3Cf. O’DOHERTY. Inside the White Cube. Oakland: University of California Press, 2000, pp. 15. Tradução livre. É um ambiente sem distrações, que tenta aniquilar todos os estímulos estranhos aos próprios trabalhos. Ainda seguindo o autor, “o trabalho é isolado de tudo que poderia distraí-lo da própria avaliação de si mesmo”. 4Idem, pp. 14.
Poderíamos questionar se essa separação radical entre o espaço em que as obras são exibidas e o mundo no qual vivemos cotidianamente não termina por afastá-las desse mundo. Mas muitos trabalhos contemporâneos nos provam que essa não é uma decorrência necessária. Vemos, em alguns trabalhos, a exploração das distinções entre o espaço expositivo e o que está fora dele até mesmo ocupando o centro da problemática, estabelecendo canais de trânsito entre esses dois extremos e questionando as mudanças de significados implicadas na sua existência em cada um dos lados dessa oposição.
O museu do louvre pau-brazyl é uma das direções que essa reflexão da arte sobre seu lugar no mundo pode tomar. Os trabalhos, concebidos a partir de tradições de investigação que tinham o espaço expositivo moderno como referência, sofrem transformações quando expostas em um edifício nos moldes do Louvre. Pensar nesses trabalhos nesse lugar não é pensá-los nas galerias de arte, mas também não é pensar na arte de rua ou dos grandes trabalhos em áreas públicas financiadas pelo estado, por empresas ou mesmo pelas megaexposições de arte contemporânea. Essa exposição acontece em um espaço que Bauman chamaria de “segunda categoria de espaço público, mas não civil”. 5Cf. Modernidade Líquida, op. cit., pp. 114. Uma categoria que “se destina a servir aos consumidores, ou melhor, a transformar o habitante da cidade em consumidor”. Esse é o contexto do lugar onde estão os trabalhos apresentados. Eles não entram nem no jogo de significação que acontece no cubo branco, nem em sua relação direta com a paisagem urbana ou como marco da memória coletiva.
Uma maneira de ilustrar essa ideia é sugerida pelo trabalho da artista Rochelle Costi. Em várias ocasiões, contextos e locais, ela traz a experiência da cidade, do mundo externo, para dentro de suas obras e exposições. Em um trabalho executado em 2009 no Centro Cultural São Paulo a artista traz à luz partes daquela instituição que são invisíveis para o grande público. Os Objetos Encontrados são objetos e imagens que vêm das oficinas, dos depósitos e locais de trabalho do centro cultural. A rotina desses locais, o espaço de trabalho e convivência dos funcionários do CCSP, contrasta com a rotina do espaço de exposições, que são frequentados por outras pessoas, com outros interesses e que praticam outras atividades. Normalmente fora da sala de exposição, local da visibilidade, são invisíveis para o público, mas trazidos para dentro da sala se tornam o foco do que está sendo mostrado. Aquilo que é normalmente escondido do outro lado está exposto para ser visto. Esse trabalho é o avesso da exposição, a não-exposição que se torna o tema dela própria.
No caso do edifício Louvre, são outros os frequentadores e os espaços. Não há apenas essa oposição entre visitantes e funcionários, entre espaço aberto de exposição e espaço restrito de trabalho. Logo, na obra apresentada no louvre pau-brazyl é outro avesso que é mostrado. O espaço investigado pela artista, é uma galeria de lojas e um edifício residencial. De algum modo a oposição entre esses dois mundos que coabitam o mesmo lugar continua pertinente. Da mesma forma que nos museus, galerias de arte e centros culturais, há a oposição entre o lugar de visitação e o lugar de trabalho. Aqui também existem as áreas residenciais, as garagens, os espaços mais e menos comuns de trabalho e moradia. Todos esses lugares são levados em conta pela artista. Mais fatores entram em jogo, outras relações de trabalho e de convivência são acionadas pela obra nessa exposição, complexificando e abrindo novas possibilidades de interpretação que extrapolam aquelas dos espaços tradicionais de exposições de arte.
No percurso inverso ao de Rochelle Costi, saindo do espaço expositivo e indo para o mundo cotidiano, o museu do louvre pau-brazyl tem a participação do Coletivo Filé de Peixe com a obra/projeto Piratão. Ele já existe desde 2009 e num de seus desdobramentos trafega no espectro que vai do museu às ruas vendendo cópias piratas de videoarte em camelôs, da mesma forma que a maioria dos ambulantes vendem DVDs por toda a cidade. Realizadas em diversos locais, é interessante a mudança da reação geral do público conforme muda o lugar em que o trabalho acontece. A dicotomia dentro/fora se estabelece nesse projeto quando pensamos no sentido, no valor e no tipo de exibição que o projeto acarreta aos vídeos. Por um lado temos os vídeos que estão dentro do museu ou da galeria, visíveis publicamente durante as exposições; por outro, quando estão fora da sala de exposição, dentro de reservas técnicas e coleções particulares em suas cópias limitadas e preços inflados, se tornam invisíveis.
Depois de apropriados pelo projeto do coletivo, esses vídeos se tornam simples produtos disponíveis no comércio de rua, mercadorias que não estão sujeitas às considerações atribuídas a uma obra de arte. Mas lançados ao mundo exterior e vendidos nas ruas como qualquer outro conteúdo no mesmo formato, é só no interior das casas dos consumidores que esses vídeos serão exibidos. Sua distribuição em cópias ilimitadas e a preços acessíveis torna privada a exibição que antes tinha um caráter público, mediado pela instituição cultural. Realizado dessa vez em uma galeria comercial no centro de São Paulo, um lugar intermediário entre o luxo de uma galeria de arte e o caráter público de um museu, o Piratão estabelece uma relação nova com o comércio de rua. Esse lugar intermediário disputa lugar com o comércio informal, não se situa nem no luxo das galerias de arte e nem na simplicidade dos camelôs.
Assim, o que encontramos no louvre pau-brazyl são oposições com limites mais tênues entre dentro e fora, público e privado, visível e invisível. Aqui tais dicotomias não podem funcionar da mesma maneira. Começam a se tornar mais claros os direcionamentos de sentido impostos aos trabalhos que se mostram nesse local e ambiente. Como vemos, a realização dessa exposição não trata de monumentalizar ou agregar valor mercadológico ao espaço, muito menos de transformar o edifício em museu ou galeria de arte. Trata-se de afirmar a importância, em seu contato direto com o mundo do qual trata, de trabalhos que dialogam com as imagens que nos chegam na vida corriqueira. É uma exposição que interpõe ao fluxo de imagens cotidianas outro tipo de imagens, de algum modo originárias e deslocadas do contexto habitual de uma exposição de arte. Com isso, as relações de significado ganham um caráter próprio e distinto daqueles da sala de exposição. Sua relação com o resto do mundo os coloca em um contraste que permite pensar tanto o mundo quanto os trabalhos.
Grande pesquisador e inovador sobre o papel da arte na vida moderna e urbana, Flávio de Carvalho sugere uma comparação que ilustra bem os problemas decorrentes dessa vida que levamos. Em Os Ossos do Mundo, afirma que o “homem dentro de uma civilização tem os seus sentidos impregnados e afogados, ele quase que só emana e recebe do que existe imediatamente em redor, ele é um ser isolado pelos fatos que o rodeiam, um ser sem ponto de vista; não há julgamento porque não há contraste, e ele é, como um peixe dentro do mar, quase incapaz de apreciar os acontecimentos de uma vida vizinha”. 6Cf. CARVALHO, Flávio de. Os ossos do mundo. São Paulo: Antiqua, 2005.
No louvre pau-brazyl a linguagem e os questionamentos da arte coexistem espacialmente com um ambiente de valores e práticas mais automáticos e corriqueiros do que na maioria das exposições. Longe de enfraquecer os trabalhos, isso oferece uma possibilidade intensa de percepção de contrastes, de negações e aproximações que se tornam mais ricas à medida que aprofundamos a atenção tanto nas obras quanto no próprio mundo. Isso é que nos leva à percepção desse contraste que falta ao peixe de que fala Flávio de Carvalho: o contraste que desafoga os sentidos. Ele nos liberta da prisão dos fatos que nos rodeiam, abrindo outras possibilidades para além das imediatamente disponíveis e nos permite formar um ponto de vista. É ocupando o espaço da vida cotidiana que o museu louvre pau-brazyl amplia as temporalidades e dimensões das obras que ali estão, criando novos modos de ocupar o edifício e complexificando as relações entre a arte e o público.

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Este texto foi originalmente publicado no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em junho de 2021.
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- 1Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Zahar, 2001, pp. 329.
- 2Idem.
- 3Cf. O’DOHERTY. Inside the White Cube. Oakland: University of California Press, 2000, pp. 15. Tradução livre.
- 4Idem, pp. 14.
- 5Cf. Modernidade Líquida, op. cit., pp. 114.
- 6Cf. CARVALHO, Flávio de. Os ossos do mundo. São Paulo: Antiqua, 2005.