O edifício Louvre guarda uma série de contradições úteis para pensarmos os limiares que esquadrinham a memória de uma cidade. Ele é avistado e fabulado por um grande número de pessoas que circulam pelo chamado Centro Novo de São Paulo. Todo prédio é, ao mesmo tempo, uma pele exposta ao olhar externo e uma trama de vísceras onde se elaboram outras matérias. Qual a história fisiológica deste edifício? Quais terão sido os muitos afetos a atravessá-lo? O que nele veem as tantas pessoas que, numa pausa do trabalho, o contemplam dos prédios em frente? Aquelas que esperam no sinal, vindas da rua Marconi e da Praça Dom José Gaspar? As que param na calçada para olhar para cima? E o que veem, de dentro e de fora, os seus habitantes, as pessoas que todos os dias o mantêm?
O edifício Louvre pode ser pensado como elemento monumental e museal de uma multiplicidade de pontos de vista, alguns dos quais – pois sempre haverá outros, insuspeitos – estão sendo postos em questão de modo arguto e bem humorado no projeto louvre pau-brazyl. O seu colorido e o vocabulário estilístico, que aprendemos a atribuir ao an/arquiteto Artacho Jurado, distinguem-no dos outros edifícios da avenida São Luís, ao mesmo tempo que o conectam a outros prédios que se transformaram em pontos de referência na cidade–o Saint-Honoré, o Viadutos, o Cinderela. Mas, tomado como parte do conjunto de fachadas que conformam a avenida onde está, ele contribui em particular como elemento monumentalizador de um período histórico sempre relatado pelos moradores e frequentadores da região central: o período da riqueza e da sofisticação, contra o qual se vislumbram os matizes diversos de um presente decaído.
Essa quimera da riqueza e da sofisticação se traduz no nome do próprio Louvre e constitui um tema articulador do repertório de nomes atribuídos a prédios no Brasil, em que encontramos recorrentemente as referências a lugares elegantes no estrangeiro e a um cânone de artífices da dita “grande arte”, encenando ambos uma vida de jet set. Assim, se neste Louvre há os blocos chamados Velázquez, Renoir, Da Vinci e Rembrandt, encontramos alhures o prédio Place Vendôme e outros batizados em referência a cânones mais recentes do bom gosto, como por exemplo os jazzistas Stan Getz e Charlie Parker. Estas séries de nomes conversam com outras que são familiares aos paulistanos e frequentes nas cidades brasileiras. Há muitos nomes de lugares importantes no próprio Brasil; há os nomes de mulheres, com e sem sobrenomes, de homens com sobrenomes, e de suas empresas; há os nomes de santos; há os nomes indígenas, que podem se referir a personagens históricos, literários ou, mais uma vez, a lugares próximos e distantes.
O mundo descortinado por esta onomástica predial – que pode ser inserida, ela própria, num repertório mais amplo de nomes atribuídos a espaços públicos – guarda semelhanças curiosas com o que se encontra num repertório pictórico, por assim dizer, pré-moderno: retratos de pessoas e famílias, paisagens, arte sacra, episódios significativos de trajetórias individuais e coletivas, todos eles dispostos à vista de uma plateia, que no caso dos prédios, é ainda mais variada que a das galerias e museus. Os transeuntes poderão localizar ou não o referente de origem dos nomes e, de todo modo, obter um efeito mais imediato de evocação ou estranhamento. Outras associações se farão em suas próprias trajetórias por aquelas e por outras ruas, além de elucubrações poéticas e históricas não muito distintas desta que se desenvolve aqui.
Digamos, então, que a cidade se apresenta como uma espécie de museu de importâncias: os prédios têm marcados em seus nomes o seu caráter monumental e as teias de memória às quais esperam se ligar. “Por que e para que um museu?” pode aparecer, assim, como uma modulação específica da pergunta mais geral sobre os efeitos e os sentidos da memória de uma cidade e sobre o sentido da própria arte como fábrica de evocações.
Embora as vanguardas artísticas do início do século XX tenham iniciado uma trajetória de fuga da ideia de figuração ou representação, sabemos quanto ainda é custoso subverter a recaptura que os museus e os outros circuitos de produção da memória acabam por promover para a lógica da distinção, conforme eles constroem séries coerentes de nomes e sobrenomes na acumulação de artefatos artísticos. As tensões e paradoxos que rondam a geração que convida e acolhe o projeto moderno em São Paulo atingem diretamente um discurso sobre a arte até hoje reverberante de nomes, sobrenomes e lugares de eminência, que, no entanto, acabou por devorar a eles próprios, iconicizando suas personagens centrais.
A canibalização do modernismo por essa lógica nos oferece um ponto de vista interessante – e prospectivo – para pensarmos a estranha inserção de Artacho Jurado na produção de uma nova linguagem arquitetônica dentro do museu de grandes novidades da arquitetura paulista entre os anos 1940 e 1970. É o que proponho mirar daqui, cercando um impasse bem visível na trajetória de quem, na geração de 22, mais se dedicou à institucionalização desse novo projeto estético e político e, não à toa, veio a ter seu próprio nome atribuído a um grande prédio da avenida São Luís, a biblioteca arranha-céu que também contempla esse Louvre paulistano: Mário de Andrade.
O mundo artístico assediado e ridicularizado pela primeira geração modernista não era muito diferente do de hoje no que ele tinha de um repertório pretensioso de grandezas, ainda reconhecível não só na onomástica predial que ensaiei acima, mas também nas expectativas que surpreendemos (a nosso próprio despeito) em nosso engajamento com a arte e a história.
A primeira percepção a orientar a subversão modernista era a de que o vocabulário e os usos da arte monumentalizadores e tributários de um ponto de vista imperial e cortesão não serviam à vida das grandes cidades que se conformavam no amadurecimento da República, sob novos regimes de relação de trabalho, novas linguagens em circulação na indústria cultural e com a chegada de legiões de imigrantes. Em seguida, logo após a semana de 22, instaura-se a pergunta sobre os termos nos quais se definiriam os caminhos estéticos futuros – deveriam ser estes, como ainda o eram, parisienses? Em outras palavras, quão paulistanas, paulistas ou brasileiras eram de fato as belas-artes e belas-letras que formaram o gosto da geração de 22? E, após três décadas de República, o que faria brasileira essa São Paulo cheia de italianos?
O impasse não deixa de ter um ar de família com a estranheza do edifício Louvre e de outras obras do autodidata galego-brasileiro Artacho Jurado, em que tantos de nós reconhecem um vocabulário de sabor tropical. O problema do Brasil como fato histórico e fato estético ocupa Mário de Andrade por toda a vida, levando-o a reunir, entender e montar, a partir da noção de documento, os tijolos do que poderia vir a ser uma arte leal, não a um imaginário imperial e cortesão, mas àquela que se reconhecia, seguindo o projeto romântico, como uma entidade nacional enraizada no popular. Após a invasão modernista a petardos e piadas no Teatro Municipal da Paulicéia Desvairada, o grupo ali formado se debruça sobre as possibilidades de arte a se construir dos escombros de um passado que não era distante, mas se via, também ele, sob constante assédio e sedução das modas e invasões estrangeiras. Que pedaços nos restavam do passado colonial, e como neles recuperar a importância da presença negra e indígena? Como ser fiel às relações complexas de troca e afetos entre as partes assimétricas que gestam os corpos, as sensibilidades e o gosto local?
Nos fazeres poéticos e artísticos, as soluções partem, de modo geral, de certo vocabulário marcado como popular e dos processos e linguagens que estruturam seus usos pelos grupos subalternos, tendo o humor e a curiosidade como atitudes fundamentais do artista – em contraposição à erudição canonizante e à atitude de reverência que eles reconhecem nas gerações precedentes. Se os resultados dessa receita são prolíficos e variados, Mário tem, neste grupo, a singularidade de se dedicar de modo mais sistemático aos lugares de reprodução dessas invenções. É ele, para dizer com todas as letras, quem mais se preocupa com museus, documentos e monumentos no sentido literal.
A assunção da efígie de Mário ao sisudo prédio cinzento da Praça Dom José Gaspar diz pouco da angústia que lhe suscitava a produção de sua própria importância e também de seu afeto pelo que a sensibilidade brasileira tinha e tem de erótico, de patético e de religioso, a despeito da constante renovação de um bom gosto urbanizado e blasé. Mário debateu-se por toda a vida entre as pulsões modeladas, de um lado, na figura do artista predestinado, inspirado e virtuoso, e de outro no incômodo com a noção de um destino individual, o que o levou a formular o projeto de uma arte que fosse produtiva no cotidiano da vida em sociedade, e a tomar para si a tarefa de fazer circular as possibilidades que cercavam os artefatos estéticos entre esses dois grandes meios (assim ele os pensava), o do popular e do erudito. Para isso, alimentou sua erudição e sua vocação de comentador, investindo tempo e recursos na formação de uma biblioteca, uma coleção e um fichário pessoais – e na realização de viagens de estudo que foram dos arredores de São Paulo até a Amazônia.
Não menos importante, ele foi desde muito jovem, professor de canto, piano e história da música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. A sua própria vida cotidiana se fazia, assim – entre o Centro e a Barra Funda – num percurso entre os circuitos mais amplos dos artefatos artísticos, desde seus trajetos mais vanguardistas e eruditos, até aqueles da sua fruição mais popularizada. Seus movimentos em direção à institucionalização do projeto estético e político modernista são o cume dessa trajetória. Na diretoria do Departamento de Cultura, entre 1935 e 1938, Mário supervisiona e promove pesquisas etnográficas e folclóricas que abastecessem os artistas e o público de um contato com a expressão popular e tradicional em pleno desvario metropolitano; constitui uma Discoteca Pública que circula o repertório orquestral contemporâneo, de audição pouco acessível senão pelo disco; circula livros pelos bairros operários em bibliotecas montadas em ônibus; faz com que os corpos infantis dos filhos de imigrantes se acostumem às toadas e passos da Nau Catarineta; e concebe junto a Rubens Borba de Moraes e Sérgio Milliet o que virá a ser a Biblioteca Municipal.
Na falta de uma continuidade de gestão na Prefeitura de São Paulo com a vinda do Estado Novo, se lhe apresentam, no novo circuito da gestão Gustavo Capanema do Ministério da Educação e da Cultura, outras modalidades de estabilização e circulação das matérias-primas dignificadas pelo olhar moderno: um desenho para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, estudos para um novo Museu Nacional, uma Enciclopédia Brasileira. Todos esses movimentos de estabelecimento lhe exigem o saber e a ponderação exercitados na trajetória pregressa de professor e de crítico, implicando a seleção e o critério do gosto, assim como o juízo e o equilíbrio diante dos maus usos de um pensamento nacionalizante de inclinação fascista, sem, por outro lado, desmerecer as contribuições dos estrangeiros que chegam com novidades, fugidos da Europa.
O que impressiona a quem acompanha esta biografia é que a maior parte dos projetos articulados por Mário de Andrade nessas fantasias de fundação, documentação, musealização, institucionalização, estabilização de uma arte brasileira não tem um efeito imediato maior que o da sua própria e imediata iconicização após sua morte em 1945, materializada no batismo da nossa Biblioteca Municipal, que de certo modo marca a transição para uma nova geração e novos debates sobre os sentidos do projeto moderno. A sua campanha sobre a função social da arte, sobre a perversidade fundamental da figura do artista virtuoso, sobre os modos possíveis de pensar uma arte moderna que servisse à vida coletiva, acabaram ocultas por trás de sua vocação para “puxador de fila”, que conformou uma trajetória heroica e sacrificial – desbravador de sertões, fundador de linguagens, mestre de uma geração, demiurgo das políticas culturais, Macunaíma dos destinos frustrados. A quem interessa, contudo, o cânone que devora ao próprio Mário, consumido em estudo insone nos vinte anos que precedem a sua morte, e que acaba por monumentalizá-lo em seguida? Para que pode servir um Mário de museu, um Mário-prédio-de-biblioteca, mais além de nossas próprias fantasias narcísicas de importância culta e elegante?
A esperança da nossa geração é que a prática de documentalizar, iconicizar, e monumentalizar nossa própria vida e a vida alheia possa ser subvertida pelos usos sempre inesperados dos estranhos artefatos que assim produzimos. A visão acadêmica e historicizante que nos forma, infelizmente, ainda é restrita e elitizada, e talvez não tenha conseguido se libertar de um catálogo de eminências: Louvre, Jaraguá, Eiffel, Esther, Ceci e Peri. Por sorte, há sempre mais que a escrivaninha e o atelier do artista; há as festas e as revoltas. Talvez valha tanto, ou mais, sambar na Praça Dom José Gaspar. As paqueras das calçadas, as novas aldeias gestadas nas ocupações de outros monumentos arquitetônicos, e os lares mínimos feitos pelo povo de rua sob as marquises produzem memórias igualmente mais valiosas. E talvez o galego-brasileiro Artacho Jurado não precise virar um herói; quem sabe possamos guardar de seu Louvre a recalcitrância à colonização do bom gosto.
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Este texto foi originalmente publicado no livro a autobiografia da monalisa (museu do louvre pau-brazyl, 2016) e revisado em junho de 2021.
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