sociedade, política e religião: o teatro na grécia clássica

A normalidade é uma estrada pavimentada: é cômodo para caminhar, mas nela não crescem flores.

Vincent Van Gogh

As origens ocidentais do teatro são gregas, mais especificamente áticas. Tendo sido oficializadas no final do século 5 a.C., no governo de Pisístrato (561-528), 1No mundo grego, as representações teatrais aconteciam desde o século 6 a.C. na Sicília; mas o período de maior desenvolvimento do drama foi no século 5 a.C., na Ática, quando por volta de 536 ou 535 a.C. Pisístrato instituiu, em Atenas, os concursos de representações regulares nas principais festas em honra de Dioniso. em Atenas, as representações teatrais tiveram extraordinário alcance cultural, grande repercussão social e papel educativo relevante para o estabelecimento e a manutenção da cidade democrática. O uso que os dramaturgos fazem do mito e o seu significado político e religioso são fundamentais no desenvolvimento da arte dramática em Atenas, onde, anualmente, a partir de 536 ou 535 a.C., as tragédias, as comédias e o drama satírico começaram a ser representados nas festas dedicadas ao deus Dioniso: as Grandes Dionísias e as Leneias.

Durante os festejos, 15 mil pessoas aproximadamente ocupavam a arquibancada do teatro de Dioniso para ver, na cena, os atores atuarem e, na orquestra, o Coro cantar e dançar. Dessa forma, a multidão dos cidadãos participava do evento que se convertia numa grande festa popular organizada pela cidade com o intuito não apenas de entreter, mas de fazer uma reflexão coletiva acerca do homem e de seus valores a partir das narrativas míticas gloriosas do passado. Desses relatos os dramaturgos retiravam seus temas de predileção, não lhes cabendo inventar nada de novo, visto que o espectador do teatro ateniense estava mais interessado em saber de que maneira o poeta iria narrar ou mostrar uma história, já diversas vezes contada e vista, do que ouvir algo totalmente inédito. Encenavam-se os mitos que já eram conhecidos por meio dos poemas homéricos, das cenas pintadas nos vasos de cerâmica, dos motivos esculpidos no mármore dos templos ou dos relatos contados aos filhos por seus progenitores.

Todavia, não era todo o conteúdo mítico que interessava ao dramaturgo, devendo eleger, entre os mitos, as narrativas mais adequadas ao seu propósito, em especial as cenas mais comoventes que poderiam provocar no público uma reflexão e, consequentemente, promover uma “educação sentimental.” 2GARCÍA GUAL, Carlos. Enigmático Edipo. Mito y Tragedia. Madrid: FCE, 2012. Os dramaturgos optam por levar ao palco a história de aristocratas ilustres e abastados do passado grego, por exemplo, a família dos labdácidas e dos atridas, pois, conforme bem observa Aristóteles na Poética (335-323 a.C: 1454a9-13), o efeito trágico advém do sentimento de distanciamento, no espaço e no tempo, entre o público e o herói, e de aproximação e identificação com os infortúnios do herói, verossímeis e suscetíveis de acontecer com qualquer um dos espectadores presentes no teatro de Dioniso.

Desencadeador de paixões irrefreáveis e inserido nesse estado que ameaça se romper a qualquer instante, o teatro figura como pilar de sustentação e regulador da cidade democrática em toda sua complexidade: de um lado, a comunidade busca conciliar o interesse de todos com o bem-estar individual; do outro, o indivíduo – que nem sempre tem o mesmo desejo da maioria – procura diminuir ao máximo tal complexidade e restaurar as diferenças sociais. Sentados no teatro de Dioniso, dividindo o mesmo espaço, estão o cidadão comum, na arquibancada, e o patrocinador do coro, na proedria. 3Nas assembleias, nos jogos e no teatro, eram os assentos destinados aos cidadãos que patrocinavam os gastos com o Coro, gozando, assim, do direito de presença, que consistia na permissão para sentar-se, nas festas públicas, nos primeiros bancos, de onde atraía para si a atenção de todos os presentes nesses eventos. As representações teatrais, sobretudo a tragédia, parecem operar como uma estratégia que permite ao tirano da cidade granjear a simpatia do povo, pois as extremidades do corpo cívico se reúnem para celebrar a mesma cerimônia. Segundo Cusset, “o espetáculo trágico é a pausa da vida cívica” 4CUSSET, Christophe. La Tragédie Grecque. Paris: Éditions du Seuil, 1997, p. 6. , ocasião na qual a cidade pode se regenerar, suspendendo, temporariamente, todas as contradições.

Nessa direção, este artigo pretende discutir os aspectos políticos, religiosos e sociais do teatro na Grécia Clássica e procura argumentar que o culto dionisíaco, por ocasião do qual as representações teatrais têm seu lugar, é o momento oportuno para a cidade discutir a liberdade de expressão e vivenciar a supressão das tensões sociais a que está submetida. Discutimos, ainda, a presença dos aspectos políticos, religiosos e sociais no teatro, e a repercussão desses elementos nas tragédias representadas no teatro de Dioniso em Atenas.

Os festivais dedicados a Dioniso

O que se conhece, atualmente, como teatro grego, é, em geral, produto de fatores sociais, políticos e religiosos com os quais tal atividade mantinha contato, e seu desenvolvimento se dá, particularmente, na pólis ateniense, modelo de instituição democrática do século 5 a.C. No teatro antigo, as apresentações têm caráter multifário e não consistem apenas de performances teatrais e artísticas, mas também de uma grande variedade de outras atividades, que inclui ações ritualísticas e competições. 5CHANIOTIS, Angelos. “Theatre Rituals”. In: WILSON, Peter (Ed.). The Greek Theatre and
Festivals: Documentary Studies. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 48-66.
Por ocasião das festas de cunho religioso dedicadas às divindades, muitas cerimônias são realizadas, transformando o mundo grego antigo numa cultura do festival. Interessa-nos, para nossa discussão, os festivais em que há a presença de Dioniso como figura de culto.

Há, na Grécia, durante o ano todo, festas em honra aos deuses olimpianos. Destacamos várias cerimônias em honra a Dioniso, que aconteciam entre o fim do inverno e o início da primavera: as Dionísias Rurais, as Leneias, as Antestérias e as Dionísias Urbanas. Além dessas, eram realizadas festas mais simples em outras estações do ano, por exemplo, as Oscofórias, que tinham lugar no quarto mês do calendário ático, o Pianepsión (correspondente à segunda metade de outubro e à primeira de novembro), em pleno outono. Festejavam-se as Oscofórias no mesmo dia em que se celebravam as Pianépsias, o festival de Apolo. O significado dessa festa tem grande importância religiosa pelo fato de Apolo e Dioniso, deuses assimétricos, compartilharem o mesmo dia santo, isto é, de Apolo ter dado a Dioniso uma parte do seu dia, o sétimo dia do mês Pianesión. 6SIMON, Erika. Festivals of Attica: An Archaeological Commentary. Madison/Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1983, p.89. Mais interessante ainda é saber que os dois deuses compartilhavam, em Delfos, o mesmo santuário: Apolo sendo venerado no verão, e Dioniso, no inverno.

Em um vaso do século 4 a.C., em forma de cálice-cratera, Apolo e Dioniso se encontram, em Delfos, e dão as mãos em gesto de cumprimento. Apolo, partindo, leva consigo o verão, enquanto Dioniso, recém-chegado, traz o outono, para se preparar para o inverno, quando será cultuado. Encontramos, nesse movimento de chegada e partida, características fundantes de ambos os deuses. Se, de um lado, a norma diurna, simbolizada na claridade da luz, resplandecente pelo brilho de Apolo, profetiza o destino humano; de outro, a norma noturna, expressa, pela escuridão na qual Dioniso e o seu séquito submergem, o afrouxamento dos laços civilizados, conectando-se à noite e aos cultos orgiásticos.

As Oscofórias eram celebradas na época da vindima e da prensa da uva, sendo, portanto, um agradecimento a Dioniso, o doador dos belos cachos de uva e de uma excelente colheita. Por ocasião da festa, havia uma procissão liderada por dois jovens, os oskóphoroi, que, vestidos de mulher, portavam um ramo de parreira carregado de uvas. Tal ritual era típico de festivais de divindades de vegetação, que não são imortais. A mortalidade, ligada ao canto e à dança, alegre ou triste, realça bem a natureza do deus Dioniso como um deus nascido duas vezes, que, mesmo sendo um deus, morre para renascer.

Se, nas Oscofórias, as pessoas se alegravam pelo início da colheita, quando acontecia a prensagem da uva, para o fabrico do vinho, nas Antestérias, celebradas por três dias, na segunda semana do mês Antesteríon, rapazes e moças que atingiam a adolescência eram coroados com flores para demarcar o início da primavera. No primeiro dia, os barris de vinho eram abertos e levados ao templo de Dioniso, onde eram misturados à água, com o intuito de não se provocarem tantos danos a seus usuários.

Trata-se de um momento de comunhão e de libertação dos liames sociais, pois senhores e escravos participavam da bebedeira, e crianças, entre 3 e 4 anos, eram coroadas de flores e recebiam seu primeiro cântaro de vinho. Dando prosseguimento aos festejos, no segundo dia, as pessoas, embriagadas, caminhavam por toda a cidade e participavam de um concurso público (cujo prêmio era um odre de vinho) que consistia em beber todo o vinho contido no khóos ou khoûs, espécie de vasilha para guardar líquido. No terceiro e último dia, havia a festa das marmitas, as celebrações secretas a Dioniso e a preparação do casamento sagrado da esposa do arconte-rei ou basileús com Dioniso.

É bastante interessante a simbologia do casamento do deus da fertilidade, Dioniso, com a mulher do arconte-rei, representante da sociedade ateniense, porque evidencia, claramente, a importância do papel de Dioniso para o reestabelecimento da cidade. Nessa relação, o deus não é marido, mas um amante, tampouco é um regulador dos costumes, mas, tão somente, um liberador da pulsão de vida dos participantes dos festejos, promovendo a transgressão dos imperativos sociais impostos pela cidade.

Embora a tônica desse festival fosse a alegria e a celebração pelo bom resultado obtido com a colheita anual, havia nele uma dimensão sombria, que o aproximava das Oscofórias. A presença dos gênios da morte no segundo dia do festival, quando, de acordo com a tradição, voltavam à terra para transitarem pela cidade, era celebrada sem música e sem declamação de poesia. No último dia havia o culto aos mortos, em que seus fantasmas regressavam ao mundo dos vivos e eram necessárias “medidas catárticas” 7CASTIAJO, Isabel. O Teatro Grego em Contexto de Representação. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p.19 com todos os participantes ritualizando um choro generalizado a fim de que os males fossem afastados para longe da cidade.

Dioniso e o teatro

Foi no festival das Grandes Dionísias, a maior e mais importante celebração em honra de Dioniso, divindade do vinho e dos mistérios, que o teatro assumiu um papel de destaque nos festejos oferecidos ao deus. Diante do poderio econômico, civil e artístico que vivia Atenas, a performance teatral surge como uma forma poderosa de comunicação poética, além de funcionar como entretenimento e como ferramenta extraordinária de educação das emoções do cidadão grego. Educação aqui entendida como um processo complexo do ser em geral. Por duas vezes no ano, os cidadãos acorriam ao teatro: em Gamelión (fim de janeiro), nas Leneias, e em Elafebolión (fim de março), nas Grandes Dionísias. Os espectadores podiam assistir, com ineditismo, a espetáculos que, em Posideón (dezembro), seriam representados em performances nas Dionísias Rurais, em outros pontos da Ática. As performances aconteciam em um teatro ao ar livre, construído na colina Sul da Acrópole, em um bosque sagrado que pertencia a Dioniso, próximo do seu santuário. “O deus, isto é, sua estátua assistia ao espetáculo (…) e seu sacerdote se sentava com os magistrados da cidade”, entre eles “o arconte responsável pelo concurso”. 8BILLAULT, Allain. La Littérature Grecque. Paris: Hachette, 2000, p. 50. Por ocasião dessa festividade, os representantes religiosos, políticos e civis ocupam o mesmo espaço no teatro; fruto de uma decisão oficial de Pisístrato. Com o teatro, a cidade se olha no espelho e exibe suas múltiplas faces, dentre elas suas faces trágica, cômica e satírica. Os poetas dramaturgos abordam questões pertinentes à cidade, debatendo os problemas de justiça, da vida em comunidade, da guerra e da paz. Na realidade, os temas do teatro não são tão diferentes dos abordados pela política. Por exemplo, na comédia Lisístrata (411 a.C), de Aristófanes, a personagem central dá ao Conselheiro uma lição de como administrar a cidade:

CONSELHEIRO – Como vós então sereis capazes de reter tanta desordem nas cidades e nela pôr fim?
LISÍSTRATA – De modo muito simples.
CONSELHEIRO – Como? Mostra.
LISÍSTRATA – Como um fio, quando está embaraçado, como este, tomando-o, puxando-o com fusos deste lado e daquele outro, assim também esta guerra acabaremos, se nos deixarem, desembaraçando-a pelos embaixadores, deste lado e daquele outro.
CONSELHEIRO – Das lãs, dos fios e dos fusos negócios terríveis presumis cessar? Que tolas!
LISÍSTRATA – E se houvesse algum bom senso em vós, das nossas lãs administraríeis todas as coisas. 9ARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução de Ana Maria César Pompeu. São Paulo: Hedra, 2010, vv. 565-73. 10 Op. Cit. p. 7.

A cena acima seria improvável no cotidiano da mulher ateniense do século 5 a.C., entretanto, o uso franqueado da palavra no teatro permite o questionamento do interdito. Como bem nos lembra Cusset, “a palavra é utilizada no espetáculo (…) como no debate político”. 10Op. Cit. p. 7. Nesse sentido, destacamos a natureza política do teatro como arma eficaz na indicação dos conflitos presentes na cidade. Porém, a palavra não é o único elemento comum entre a arte teatral e a arte política. A ágora é um espaço de comunhão e de encontro do corpo cívico e lugar das tomadas de decisões por meio da palavra, assim como o espaço semicircular do teatro de Dioniso, onde a palavra soa como um lenitivo ao espectador das tragédias que assiste ao debate de temas que lhe são caros. Apesar da semelhança, ambos não se confundem, uma vez que o teatro tem uma dimensão artística que o diferencia da ação política. Contudo, é possível imaginar as duas partes, cada uma na sua jurisdição, desempenhando, por meio do debate, o papel de defensor do seu ponto de vista.

Na Antígona (442 a.C), de Sófocles, por sua vez, o debate entre Creonte e Antígona oscila em duas direções contrárias. 11SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. Enquanto ele defende o direito da cidade de não enterrar um traidor, ela sustenta o argumento da necessidade divina de sepultar o corpo do irmão Polinice. Nessa fronteira, diz-nos, encontramos o domínio próprio da tragédia, não apenas no limite onde as ações humanas se entrecruzam com a dos deuses, mas também no risco iminente da representação do passado “heroico” como espetáculo que afeta a cidade. 12VERNANT, Jean-Pierre & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga I e II. Tradução de Anna Lia A. de Almeida Prado; Filomena Yoshie Hirata Garcia; Maria da Conceição M. Cavalcante; Bertha Halpem Gurovitz e Hélio Gurovitz. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 5.

Se a tragédia consiste na tentativa de resolução de conflitos, cuja violência, conforme afirma Cusset, é “teoricamente verbal e não alcança o plano físico”, 13Op. cit., p. 7. ela encontrará no mito a matéria-prima das suas tramas. Narrativa sobre o nascimento dos deuses e sobre o destino do homem, o mito está sempre em decalagem em relação ao tempo do sagrado e do profano. Assim, o universo do teatro trágico está entre o mito, realidade temporal já decorrida, e as ações políticas da realidade histórica presente. Essa diferença temporal permite que os dramaturgos abordem assuntos relacionados ao presente da pólis com os trajes dos notáveis heróis do passado.

No conflito trágico, o herói, o rei e o tirano ainda aparecem bem presos à tradição heroica e mítica, mas a solução do drama escapa a eles: jamais é dada pelo herói solitário e traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos pela nova cidade democrática. 14VERNANT & VIDAL-NAQUET. Op. cit., p. XXI.

Buscando no passado heroico o modelo para suas tragédias, Ésquilo, Sófocles e Eurípides examinam amiúde a alma humana, o que lhes é franqueado pelo universo de temor em que vive o herói trágico.

No segundo episódio do Rei Édipo (427 a.C), de Sófocles, no diálogo entre Creonte e Édipo, vemos que nem mesmo o detentor do poder está isento do medo. Defendendo-se das acusações do cunhado, Creonte o refuta:

Não, se no teu íntimo ponderares as tuas razões como eu as minhas. 15SÓFOCLES. Rei Édipo. Tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho. Coimbra: INIC, 1986, v.583.

E, advertindo-lhe de que mesmo o homem superior, governante de uma cidade, pode ter medo, indaga:

Examina este ponto em primeiro lugar: preferes governar rodeado pelo medo ou como senhor de um sono tranquilo, se os poderes forem iguais? 16Ibidem, vv. 584-85.

Os poetas trágicos parecem ensinar que o medo ajuda a preservar a ordem democrática de uma cidade, por exemplo, reflexões, levadas a bom termo por Menelau no Aias (442 a.C), de Sófocles, servem de baliza para o espectador pensar questões relevantes relacionadas à vida da cidade, dado que

(…) jamais leis prosperariam em cidade onde não estivesse estabelecido o temor, nem tropa sensatamente seria comandada não tendo a barreira do medo ou do pudor! 17SÓFOCLES. Aias. Tradução de Flávio Ribeiro de Oliveira. São Paulo: Iluminuras, 2008, vv. 1073-1076.

Se até então o público fazia um julgamento moral de Aias, a sentença quase proverbial de Menelau oferece argumentos políticos ao espectador. Além do medo regulador da democracia, a tragédia expressa uma verdade dolorosa: a vida do homem é instável e transitória, pois ele está submetido aos caprichos e arbitrariedades dos deuses e do destino. No caso de Prometeu, ele pede ao coro das Oceânides que elas tenham compaixão do seu sofrimento, visto que o mal atinge a todos os mortais igualmente. Logo, nada é seguro,

Pois um só dia dobra e reergue de volta tudo o que é humano; os deuses amam os sensatos e abominam os vis. 18Ibidem, vv. 131-33.

Nessa instabilidade da sorte, o herói trágico está à mercê dos acontecimentos, contudo deve manter-se firme no seu imperativo de agir. Ora, se a tragédia surge num momento de inquietação do espírito de uma sociedade em ebulição, num contexto de nascimento do direito, da razão e da justiça dos homens em contraponto à razão e à justiça dos deuses, é natural que ela interrogue acerca do homem e de sua natureza ambígua.

A tragédia jamais irá satisfazer as exigências do pensamento único e convicto pois coloca a nu a selvageria sombria escondida no mais profundo da alma humana, assim como faz Dioniso, deus que atua na esfera da morte e da vida, da tempestade e da calmaria, da natureza selvagem e da tranquilidade, e que se mantém longe das preocupações. O deus é a imagem arquetípica da vida indestrutível, 19KERÉNYI, Karl. Dionysos: Archetypal Image of Indestructible Life. Princeton: Princeton University Press, 1986. ele faz irromper a selvageria humana, tornando possível o que antes estava sob interdição. O espectador do teatro de Dioniso era tocado pelo sentimento ambíguo que atinge o humano. Mas tal ambiguidade também afeta os deuses, capazes de realizarem boas e más ações, tanto fontes da fortuna como dos infortúnios do homem.

Se o mito apenas descreve o homem, o drama, por meio da tragédia, o coloca na pauta do dia. Os três grandes tragediógrafos gregos não tratam o tema do humano da mesma forma: em Ésquilo, encontramos “o sentido cívico do homem, em Sófocles, sua solidão, e, em Eurípides, seus sentimentos”. 20ROMILLY, Jacqueline de. La Tragédie Grecque. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 1970, p. 54.

Parece que a ambiguidade trágica está exatamente na inquirição acerca da condição e da natureza humana revelada pelo debate trágico, que

(…) vai tratar do homem dotado de um livre arbítrio, mas submetido a forças incontroláveis, tanto endógenas quanto exógenas. Os apelos à sabedoria não podem ser entendidos pelo herói. A questão recai sobre como se adequar a essas forças criadoras da violência. 21Tradução livre de ”(…) va traiter de l’homme doté d’un libre arbitre mais soumis à des forces incontrôlables, tant endogènes qu’on exogènes. Les appels à la sagesse ne peuvent être entendus par le héros. La question va porter sur comment s’accommoder de ces forces créatrices de violence”. (PAYA, Farid. De la Lettre à la Scène, la Tragédie Grecque. Saussan: L’Entretemps Éditions, 2000. p. 66-7).

Livre arbítrio, destino, sabedoria prática e violência pavimentam o caminho do herói trágico. A decisão de não matar o pai termina por levar Édipo à encruzilhada onde o crime será perpetrado. “O destino de Édipo é, definitivamente, um testemunho da fragilidade da grandeza humana”. 22GARCÍA GUAL, Carlos. Op.cit. p. 130. Assim, o mais sábio e mais justo dos homens, por ignorância, contamina a cidade, carrega a maldição pelo mais terrível dos crimes e paga um alto preço pelo crime cometido; mas, após se acomodar à violência sofrida e ter compreendido quem verdadeiramente era, recebe o favor dos deuses.

Pode-se afirmar que o teatro, assim como Dioniso, é a arte da contradição: ora alegre e brilhante, ora triste e sombria. O teatro é portador do debate que obriga o espectador, cidadão ateniense, a se posicionar nas instituições cívicas e se submeter ao crivo do olhar do outro. Nesse sentido, o espectador vive o paradoxo entre o familiar e o enigmático, cuja resolução não irá encontrar na resposta única e definitiva, mas no deslize do significante, na ambiguidade. O mesmo ocorre com Édipo, obrigado a suportar o peso dos infortúnios e da sorte, a culpar os deuses e a defender-se do crime: “Eu agi sem saber, sou inocente diante da lei”. 23SÓFOCLES. Édipo em Colono. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2003. As palavras de Édipo – combinadas com as de Char: “aquele que vem ao mundo para não perturbar não merece respeito nem paciência” 24Tradução livre de ”ce qui vient au monde pour ne rien troubler ne mérite ni égards ni patience” (CHAR, René. Fureur et mystère. Paris: Gallimard, 1962. p. 195). – definem e refletem a estatura do herói e a importância do teatro no debate sobre as contradições da cidade enquanto instituição social, política e religiosas.

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Esse texto foi originalmente publicado no livro vermelhos (museu do louvre pau-brazyl, 2020) e revisado em junho de 2021.

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  • 1
    No mundo grego, as representações teatrais aconteciam desde o século 6 a.C. na Sicília; mas o período de maior desenvolvimento do drama foi no século 5 a.C., na Ática, quando por volta de 536 ou 535 a.C. Pisístrato instituiu, em Atenas, os concursos de representações regulares nas principais festas em honra de Dioniso.
  • 2
    GARCÍA GUAL, Carlos. Enigmático Edipo. Mito y Tragedia. Madrid: FCE, 2012.
  • 3
    Nas assembleias, nos jogos e no teatro, eram os assentos destinados aos cidadãos que patrocinavam os gastos com o Coro, gozando, assim, do direito de presença, que consistia na permissão para sentar-se, nas festas públicas, nos primeiros bancos, de onde atraía para si a atenção de todos os presentes nesses eventos.
  • 4
    CUSSET, Christophe. La Tragédie Grecque. Paris: Éditions du Seuil, 1997, p. 6.
  • 5
    CHANIOTIS, Angelos. “Theatre Rituals”. In: WILSON, Peter (Ed.). The Greek Theatre and
    Festivals: Documentary Studies. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 48-66.
  • 6
    SIMON, Erika. Festivals of Attica: An Archaeological Commentary. Madison/Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1983, p.89.
  • 7
    CASTIAJO, Isabel. O Teatro Grego em Contexto de Representação. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p.19
  • 8
    BILLAULT, Allain. La Littérature Grecque. Paris: Hachette, 2000, p. 50.
  • 9
    ARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução de Ana Maria César Pompeu. São Paulo: Hedra, 2010, vv. 565-73. 10 Op. Cit. p. 7.
  • 10
    Op. Cit. p. 7.
  • 11
    SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
  • 12
    VERNANT, Jean-Pierre & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga I e II. Tradução de Anna Lia A. de Almeida Prado; Filomena Yoshie Hirata Garcia; Maria da Conceição M. Cavalcante; Bertha Halpem Gurovitz e Hélio Gurovitz. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 5.
  • 13
    Op. cit., p. 7.
  • 14
    VERNANT & VIDAL-NAQUET. Op. cit., p. XXI.
  • 15
    SÓFOCLES. Rei Édipo. Tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho. Coimbra: INIC, 1986, v.583.
  • 16
    Ibidem, vv. 584-85.
  • 17
    SÓFOCLES. Aias. Tradução de Flávio Ribeiro de Oliveira. São Paulo: Iluminuras, 2008, vv. 1073-1076.
  • 18
    Ibidem, vv. 131-33.
  • 19
    KERÉNYI, Karl. Dionysos: Archetypal Image of Indestructible Life. Princeton: Princeton University Press, 1986.
  • 20
    ROMILLY, Jacqueline de. La Tragédie Grecque. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 1970, p. 54.
  • 21
    Tradução livre de ”(…) va traiter de l’homme doté d’un libre arbitre mais soumis à des forces incontrôlables, tant endogènes qu’on exogènes. Les appels à la sagesse ne peuvent être entendus par le héros. La question va porter sur comment s’accommoder de ces forces créatrices de violence”. (PAYA, Farid. De la Lettre à la Scène, la Tragédie Grecque. Saussan: L’Entretemps Éditions, 2000. p. 66-7).
  • 22
    GARCÍA GUAL, Carlos. Op.cit. p. 130.
  • 23
    SÓFOCLES. Édipo em Colono. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2003.
  • 24
    Tradução livre de ”ce qui vient au monde pour ne rien troubler ne mérite ni égards ni patience” (CHAR, René. Fureur et mystère. Paris: Gallimard, 1962. p. 195).

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