I.
Em janeiro de 2019, o candidato de extrema-direita Jair Messias Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil e em seu discurso de posse ele afirmou: “Essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela”. 1Disponível aqui. Acesso em: 12 de nov. de 2019. Nos primeiros minutos de mandato, em duas frases, o presidente declara sem restrições a sua necropolítica e antagoniza com o inimigo encarnado de vermelho.
No programa de governo o único vermelho aceitável é o sangue. Que lugar ocupa a vida e morte nessa nova configuração em que a milícia chega ao poder e assistimos de novo à militarização do jogo democrático? Ao comentar o caso de Ágata, 2Disponível aqui. Acesso em: 10 de mar. de 2020. uma criança de oito assassinada por bala perdida durante uma ação policial no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, o vice Hamilton Mourão afirma: “o Estado é que tem que ter o monopólio da violência.” 3Disponível aqui e aqui. Acesso em: 10 de mar de 2020. Quais são as implicações dessa afirmação nesse contexto? Referir-se à violência legítima do Estado de direito para justificar a morte de uma inocente revela os absurdos retóricos e práticos cometidos por esse governo.
Esse Estado que opera no vocabulário da morte tem raízes profundas nas relações políticas e econômicas do país estende-se por tanto tempo porque há uma grande parcela da população que endossa e permite essas ações. A nação abraça e naturaliza a “política como trabalho da morte”, conceito cunhado por Achille Mbembe, em que o poder de conciliação do Estado é substituído pela soberania da “instrumentalização generalizada da existência humana”, pela decisão sobre a vida e a morte. 4MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
Fato é que o vermelho da violência está inscrito no Brasil desde Cabral. O país foi batizado em relação ao imaginário do colonizador e Hannah Arendt nos lembra que “a conquista colonial revelou um potencial de violência até então desconhecido”. A teoria mais difundida sobre as raízes etimológicas de Brasil vem da árvore pau-brasil, assim chamada por conta de sua cor avermelhada, que lembra brasas de fogo.
O nome do país é a primeira commodity explorada por Portugal, uma das exportações mais lucrativas do sistema colonial. 5SOUZA, Bernardino José de. O Pau-Brasil na história nacional. São Paulo: Editora Brasiliana, 1939. O ato de nomear tem o poder de trazer à existência, faz com que os objetos, sujeitos, emoções possam ser relacionáveis entre quem se comunica, mas nomear também pode ser um ato de conquista, de controle.
O vermelho sempre esteve presente na realidade brasileira graças à árvore que foi responsável pelo primeiro ciclo econômico e extrativista da colônia, que teve como finalidade o tingimento de tecidos europeus. Brasas de fogo ou sangue escorrendo são as nossas raízes vermelhas e coloniais.
II.
A cor vermelha aparece associada às pautas progressistas primeiro na Revolução Francesa. É a primeira vez que uma cor representa um movimento político-ideológico e a partir daí se transforma em sinônimo de comunista, socialista, extremista, radical, revolucionária, subversiva e dissidente.
A Revolução Russa, que em 1917 instaura o regime socialista soviético e elege a bandeira vermelha com a foice e martelo como símbolo, é responsável pela projeção internacional do vermelho político por meio de sua expansão tanto ideológica quanto de domínio dos territórios vizinhos que passaram a integrar a U.R.S.S. A cor passa então a antagonizar com o capitalismo, especialmente no período da Guerra Fria.
Sabe-se que o ideal comunista de sociedade igualitária nunca foi atingido e inclusive as ditaduras soviética e chinesa são responsáveis por atrocidades, entretanto, de alguma maneira, filtrou-se o significado desse vermelho político fazendo com que seu legado revolucionário ainda hoje opere como um fantasma para o sistema capitalista.
Partidos políticos alinhados às pautas mais progressistas de diversos lugares no mundo adotaram a cor por sua característica impregnada e pelo desejo da “revolução social”. É o caso do Brasil que tem em vermelho o Partido dos Trabalhadores e a Central Única dos Trabalhadores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), entre outros – representantes dos movimentos sociais e das manifestações populares que lutam pelos direitos das minorias.
III.
O filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman, na aula magna “Levantes: Imagens e sons como forma de luta” 6DIDI-HUBERMAN, Georges. Levantes: Imagens e sons como forma de luta. Disponível aqui. Acesso em: 05 de mar de 2020. realizada no Sesc Pinheiros em 2017, afirma que “quando a população se manifesta, se quer tomar uma Bastilha”. A raiz etimológica de manifestar vem do latim “manifestus”, que significa “compreensível, aparente, evidente” e é formada por “manus” – mão e “festus” – agarrado, apanhado. 7Disponível aqui. Acesso em: 05 de mar de 2020. Para Didi-Huberman, na palavra manifestar, inclui-se “primeiro as mãos, depois os próprios braços e o corpo inteiro” transformando os corpos oprimidos em corpos de liberdade que ocupam os espaços públicos, e ruas e praças em artérias que fazem fluir e pulsar os seus desejos.
Uma das primeiras representações imagéticas que se tem notícia também começa pela mão e também é um ato em vermelho. 8MACFARLANE, Robert. Underland: a Deep Time Journey. New York: W. W. Norton & Company, 2019. Palma aberta sobre a parede e pó de ocre assoprado em cima da mão, fazendo uma impressão em negativo, ou palma molhada de pigmento carimbada na pedra. Essas pinturas rupestres podem ser encontradas em diversas partes do mundo: Indonésia, Brasil, Argentina, Espanha, França. Mãos que atravessam o tempo, um mesmo ato compartilhado pelos nossos ancestrais apesar das distâncias imensas, o gesto de imprimir-se pelas mãos, um autorretrato. Não se sabe exatamente o porquê da predominância dos vermelhos no interior das cavernas, mas o mistério dessa cor inicia o fio condutor da narrativa da História e da Arte.

Fotógrafo: Jorge Caze.
O vermelho é considerado a primeira das cores por ser o primeiro pigmento que os humanos conheceram, fabricaram e abriram a paleta em diferentes tons, primeiro na pintura e depois na tinturaria. É a cor por excelência para a Antiguidade e dá origem ao próprio nome da “cor” (coloratus em Latim clássico que significa tanto vermelho quanto colorido). 9PASTOUREU, Michel. Red – The History of a Color. New Jersey: Princeton University Press, 2017.
É a cor com maior abrangência simbólica; nenhuma outra tem a elasticidade de representar tanto o delito, a transgressão, o proibido como a punição, o castigo, a justiça. A vida e a morte. Deus que desce sobre Apóstolos no Pentecostes em formato de “línguas de fogo” vermelhas, o Diabo e a mise-en-scène que o acompanha, o fogo vermelho do inferno que emite uma luz mais perturbadora que a escuridão. O vermelho é a cor dos primeiros mantos dos papas em Roma, assim como também veste a Grande Prostituta da Babilônia.
É sobretudo a cor do movimento. Desde o fluxo interno dos corpos, da sístole e da diástole, da corrente sanguínea, até o movimento do universo: é o desvio para o vermelho que prova fisicamente que ele está em constante expansão. 10Disponível aqui. Acesso em: 05 de mar de 2020. Quando utilizado nas imagens, torna-se o ponto de gravidade, com a capacidade de redimensionar as narrativas. Jeff Wall comenta a composição da obra The Storyteller e a decisão de colocar uma jaqueta vermelha na personagem localizada na zona superior da fotografia para criar uma saliência. 11WALL, Jeff. Ensayos y entrevistas. Salamanca: Centro de Arte de Salamanca, 2003. Esse impacto não é apenas estético, mas interfere estruturalmente ao criar um contraponto à centralidade da narradora.
Na criação de uma imagem, toda escolha, isto é, todos os atos estão inevitavelmente registrados. As imagens e os atos estão entrelaçados; é sempre um ato que faz com que as imagens sejam possíveis. A imagem, por sua vez, sempre carrega esse ato, impresso na superfície (nesse sentido, a sensibilidade de uma imagem vai além do tanto de luz que ela consegue processar). Imagens são potentes quando a natureza do seu ato evita os clichês da civilização, quando não cedem ao jogo de submissão e dominação do poder. 12Disponível aqui. Acesso em: 03 de mar de 2020.
Essa diferença fundamental entre imagens potentes e imagens de poder está evidente na produção artística que a dupla Adam Broomberg e Oliver Chanarin realiza no projeto Chopped Liver Press ao longo da última década. Broomberg e Chanarin produzem um pôster ritualisticamente a cada mês, imprimindo à mão uma frase em vermelho–uma citação de outros autores e pensadores–sobre uma página de jornal. As frases escolhidas–as suas influências, suas ideias–se conectam com as notícias criando narrativas inesperadas que são uma forma de resistência política, que desarmam e transformam os clichês e as manipulações dessas imagens e narrativas.
IV.
Não só as imagens carregam potência, mas também as palavras. No caso brasileiro, apesar de todo o trauma histórico envolvido e das sequelas que nos acompanham, a arte se apresenta como uma ferramenta possível de trabalhar a consciência nacional e provocar torções.
Quem primeiro dá vazão à rearticulação da memória colonial no Brasil é Oswald de Andrade que transforma o Pau-Brasil em Manifesto e em Poesia. 13ANDRADE, Oswald de. Manifesto da poesia pau-brasil. Rio de Janeiro: Jornal Correio da Manhã, 18 de março de 1924. O começo de um falar brasileiro, que assume “a contribuição milionária de todos os erros” é uma mudança de atitude radical, o esforço de atualização da linguagem (essa que é a manifestação da superestrutura ideológica) é também a libertação do imaginário. 14ANDRADE, Oswald de. Obras completas 7 – Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971
A obra de Oswald de Andrade é um dos pontos de partida para a elaboração do museu do louvre pau-brazyl que encerra a trilogia de exposições em um 3º ato que teve seu centro de gravidade deslocado por vermelhos. As obras vermelhas que compuseram a exposição demarcaram um alerta, uma emergência, uma vingança. De vermelho e mais especificamente de rojo indio pintou-se a calçada, um Mestre Vermelho espalhou-se pelos postes, palavras vermelhas entre aspas foram gravadas em uma parede subterrânea, um vermelho eletrônico emitido sem parar das janelas e um jornal feito das folhas e seiva de pau-brasil que é um DRAMA DRAMA DRAMA em vermelho. O vermelho é o começo, é um mistério e é o legado do movimento provocado pelo louvre dentro do Louvre.

THE FUTURE HAS AN ANCIENT HEART (CARLO LEVI)
[O FUTURO TEM UM CORAÇÃO ANTIGO (CARLO LEVI)]
Serigrafia em jornal
Edição de 100
*
Esse texto foi originalmente publicado no livro vermelhos (museu do louvre pau-brazyl, 2020) e revisado em junho de 2021.
*
- 1Disponível aqui. Acesso em: 12 de nov. de 2019.
- 2Disponível aqui. Acesso em: 10 de mar. de 2020.
- 3
- 4MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
- 5SOUZA, Bernardino José de. O Pau-Brasil na história nacional. São Paulo: Editora Brasiliana, 1939.
- 6DIDI-HUBERMAN, Georges. Levantes: Imagens e sons como forma de luta. Disponível aqui. Acesso em: 05 de mar de 2020.
- 7Disponível aqui. Acesso em: 05 de mar de 2020.
- 8MACFARLANE, Robert. Underland: a Deep Time Journey. New York: W. W. Norton & Company, 2019.
- 9PASTOUREU, Michel. Red – The History of a Color. New Jersey: Princeton University Press, 2017.
- 10Disponível aqui. Acesso em: 05 de mar de 2020.
- 11WALL, Jeff. Ensayos y entrevistas. Salamanca: Centro de Arte de Salamanca, 2003.
- 12Disponível aqui. Acesso em: 03 de mar de 2020.
- 13ANDRADE, Oswald de. Manifesto da poesia pau-brasil. Rio de Janeiro: Jornal Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
- 14ANDRADE, Oswald de. Obras completas 7 – Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971