Nosso cotidiano é feito de breves esquecimentos. Se esquecemos as chaves ou o bilhete do metrô – pequenos amuletos que garantem acesso –, o dia inteiro é obrigado a se reconfigurar. Há esquecimentos menos graves, como o do agasalho que é deixado para trás ou o lapso momentâneo que faz com que as plantas fiquem sem a rega diária. Já o esquecimento de um guarda-chuva ou dos óculos pode ser um evento trágico.
Quando esquecemos estas pequenas coisas, elas não deixam de existir. Pelo contrário, sua presença se firma e vem imediatamente à nossa memória no exato momento em que o esquecimento é lembrado. O esquecimento não é simplesmente uma ausência não sentida. É preciso perceber a falta para que ela exista.
Os trajetos cotidianos pela cidade também marcam o ritmo destes breves esquecimentos. Andamos pelas ruas como se traçados, casas, prédios e parques sempre fossem permanecer como parte da paisagem. Não é raro que sejamos confrontados com uma nova loja, um novo café, um novo edifício em construção ou, simplesmente, com as ruínas que passarão a dar lugar ao novo e ainda desconhecido. E então lembramos que esquecemos. Esquecemos o que havia antes exatamente naquele lugar. Aquele mesmo lugar por onde passamos todos os dias, que já havíamos incorporado como parte de um caminho próprio.
Guarda-chuvas e cidades são diferentes neste aspecto. Quando esquecemos de parte da cidade, ela deixa de existir. Não é como pegar o bilhete do metrô que ficou abandonado em cima da mesa. A cidade é composta por camadas de tempo que vão sendo lentamente plasmadas no espaço, como um manuscrito que é apagado e reescrito inúmeras vezes, um palimpsesto. E por isso esquecer o que havia exatamente naquele lugar costuma causar indignação. Como pudemos deixar passar, como pudemos ser tão desatentos, como pudemos simplesmente deixar de perceber.
A avenida Ipiranga, a rua da Consolação e a avenida São Luís formam um triângulo. Não é uma forma geométrica qualquer dentro de um mosaico, é uma das peças-chave da estrutura do jogo de armar que é São Paulo. O edifício Copan mora em uma das pontas, o edifício Itália na outra. O lado da São Luís é conformado por uma fileira de prédios que tampouco passam despercebidos.
Centenas de pessoas moram, trabalham, passam, dançam, sofrem, protestam e beijam em torno deste triângulo. A imagem deste recorte de espaço construído costuma ser usada para representar a cidade inteira, para gravar estas formas na memória de quem passa e de quem fica. Mas o que mora dentro do triângulo é mais difícil de ver, a apreensão escapa. Dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados. Vou repetir para mim mesma em voz alta: dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados. Falar talvez seja capaz de conferir alguma materialidade a este número. Esta é apenas uma parte da área interna que conforma o miolo. É a área recortada do que hoje compõe o lote F0010, setor 006, quadra 064, CodLog 052450, com entrada pela rua da Consolação, número 268. Entre todos os possíveis recortes de área do triângulo, este é o que menos chama a atenção. Muito mais do que um ponto cego, é antes um terreno vazio. Um vazio de dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados no meio do triângulo mais icônico da cidade.

Fonte: GeoSampa.
As coisas que esquecemos no dia-a-dia costumam ser diminutas. Ficam escondidas porque se mesclam aos demais objetos, sua pequenez permite a elas a astúcia dos esconderijos improváveis. As coisas que esquecemos na cidade podem ser bem maiores. Podem inclusive não se mexer e mesmo assim ser parte do esquecimento. Muitas vezes é a ruína que indica os primeiros sinais da queda, o tapume pode marcar o início da morte de um lugar. Mas como é possível lembrar que esquecemos de um grande vazio?

Fonte: GeoSampa.
“Nos momentos em que houve retenção maior pelo governo, a nossa renda enfrentava os gastos até chegar o dinheiro devido. A FAPESP sempre teve a preocupação em aplicar, em obter receita para não haver nenhum hiato no custeio das pesquisas. Houve ocasião do repasse demorar tanto que os pesquisadores fizeram um manifesto em prol da FAPESP. Em consequência, a Fundação formou um fundo de aplicação permanente que garantiu recursos, mesmo nos piores momentos. Lembro-me também que compramos um terreno na rua da Consolação para construir a sede da FAPESP. Depois, por questões que não mais me recordo, não construímos, e ficou aquele elefante branco. Precisávamos explorar economicamente e o Sr. Galvão sugeriu um estacionamento, que não sei se ainda existe.” 1Depoimento de Celso Antônio Bandeira de Mello em HAMBURGER, Amélia Império (org.) Fapesp 40 anos: abrindo fronteiras. São Paulo: FAPESP/Edusp, 2004, p.448.
A lembrança da compra: viva. A lembrança da criação do vazio: ausente. A lembrança do uso não pretendido: “um estacionamento, que não sei se ainda existe”.
A propriedade é a marca que fica enquanto a função social da propriedade esvanece.
Um estacionamento rotativo não é muito exigente. Basta um muro e uma cancela, um pouco de pintura. A junção destes elementos já é suficiente para que todos reconheçam um terreno vazio como lugar específico para deixar carros. Carros parados para que as pessoas possam se movimentar.
A baixa exigência fez dos estacionamentos horizontais uma constante no centro de São Paulo. É, muitas vezes, a maneira encontrada por construtoras e incorporadoras para fazer com que o terreno cumpra formalmente alguma função enquanto serve de reserva de valor para construções futuras. Dos 89 estacionamentos notificados pela prefeitura por descumprimento da função social da propriedade até 2016, 43 deles pertenciam a pessoas jurídicas, em sua maioria vinculadas ao mercado imobiliário.2AKAISHI, Ana Gabriela, SILVEIRA, Ana Flávia Lima da. Função social da propriedade e imóveis ociosos no centro de São Paulo: os estacionamentos rotativos e os proprietários de imóveis. Anais do XVII ENANPUR, 2019.
A FAPESP é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Apoia, com bolsas e auxílios, pesquisas científicas e tecnológicas desenvolvidas no Estado. A FAPESP não é uma empresa do mercado imobiliário. Mas a ausência de exigências que caracterizam um estacionamento rotativo deve ter falado mais alto. Melhor um vazio que por vezes é habitado por carros do que um simples vazio. Melhor um vazio temporário que gera alguma renda do que um vazio não lucrativo. É no mínimo curioso pensar que cada quinze ou vinte reais recebidos como diária de estacionamento ajudavam no caixa de fomento do conhecimento acadêmico e tecnológico – ou, ao menos, para pagar as despesas. Do estacionamento para o precário financiamento da pesquisa no país.

Fonte: Google StreetView.
A proposta original da FAPESP era construir sua sede e um edifício de escritórios no lote F0010, setor 006, quadra 064, CodLog 052450, com entrada pela rua da Consolação, número 268. Em 1991, inclusive, foi feito um concurso para desenvolver o projeto, intermediado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil.
“O projeto vencedor foi o apresentado pelo escritório Ícaro de Castro Mello Arquitetos Associados, cuja equipe era formada pelos arquitetos Rita Vaz, Christina de Castro Mello e Eduardo de Castro Mello. Rita Vaz comentou que participar e ganhar esse concurso foi muito honroso e gratificante para a equipe, pois desde a composição do júri assim como os escritórios convidados e respectivos projetos apresentados foram de alto nível. Elogiou a organização do concurso que, como regra impôs aos participantes a apresentação de uma maquete, de forma a possibilitar a avaliação da edificação inserida na quadra, o que privilegiou o projeto vencedor, principalmente por compor um volume contínuo na fachada da quadra, propiciando uma interligação com as fachadas lindeiras, de um lado, recuada, e de outro lado, no alinhamento. A quadra em questão se destaca pela proximidade à Biblioteca Mario de Andrade, e o imóvel com formato irregular (lembra uma flecha), faz frente para a Rua da Consolação, e fundos para uma rua privada, integrante do condomínio do edifício COPAN.” 3Ata da 100ª reunião ordinária da Comissão Executiva da Operação Urbana Centro, realizada em 30 de maio de 2012, p.2.

Fonte: TEUBA Arquitetura e Urbanismo.

Qual é a passagem que poderia conectar um projeto arquitetônico altamente sofisticado e um estacionamento horizontal rotativo? Como compatibilizar as duas visões de cidade que estão pressupostas em cada uma destas propostas? O ponto de contato é apenas um: dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados vazios.
Dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados vazios poderiam se transformar em uma edificação com aberturas para a rua, construída com materiais sustentáveis e de maneira inteligente, poderiam abrigar um jardim interno no térreo para conectar pedestres que passam pelas ruas do triângulo. Dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados se transformaram de fato em um estacionamento rotativo, ou seja, no meio mais barato e imediato de gerar rentabilidade e reserva de valor.
Mas também os estacionamentos podem morrer. Em 2011, a propriedade do terreno mudou de mãos. Neste caso, não foi uma construtora ou uma incorporadora que arrematou um dos terrenos vazios mais bem localizados de uma área da cidade que passava por um intenso processo de gentrificação. O terreno não só mudou de dono, mas também de estatuto jurídico. Quando a Universidade de São Paulo comprou o lote F0010, setor 006, quadra 064, CodLog 052450, com entrada pela rua da Consolação, número 268, por R$7,4 milhões, o terreno vazio deixou de ser propriedade privada e passou a ser um bem público.
“O futuro prédio, na Rua da Consolação, iria abrigar escritórios da Procuradoria da USP, a sede da superintendência jurídica, e a loja central e a sede da Editora da USP. Hoje no local funciona um estacionamento. Na avaliação de Luiz Paulo Pompéia, diretor da consultoria Embraesp, o valor pago pela universidade pelo imóvel está abaixo do mercado. ‘Esse terreno valeria entre 9 e 12 milhões’, estimou. O valor venal, dado pela Prefeitura para cobrança do IPTU, é de R$ 2,8 milhões.” 4SILVA, Cedê. USP prevê gastar R$ 11 milhões para erguer prédio administrativo no centro. O Estado de São Paulo, 30 de novembro de 2011. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,usp-preve-gastar-r-11-milhoes-para-erguer-predio-administrativo-no-centro,805095. Acesso em 19.01.2020.
“Os opositores acusam o reitor de gastar mal o dinheiro do contribuinte. Criticam a opção por obras faraônicas e dizem que ele ignora reformas feitas há pouco tempo. A livraria da editora da universidade, a EDUSP, por exemplo, havia passado por uma reforma estrutural em 2009, e já precisou ser removida da Antiga Reitoria. Rodas decidiu reformar o prédio inteiro para transformá-lo novamente na sede do governo da universidade. ‘Vai ser a Antiga Nova Reitoria’, brincou Massola. As reformas abriram um novo foco de tensão entre Rodas e parte dos professores. Em março deste ano, o reitor publicou uma carta no jornal O Estado de S. Paulo, em que informava que havia ‘interpelado judicialmente’ a direção da Associação dos Docentes da USP, a ADUSP. Deveriam responder pela acusação de que ‘verbas acadêmicas estavam sendo desviadas para construções’.” 5SCARPIN, Paula. Rodas em ação. Piauí, n.71, agosto de 2012. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/rodas-em-acao/
As cancelas e o muro do estacionamento deram lugar a um tapume improvisado. Muitas vezes o tapume anuncia o novo. Muitas vezes a transformação de terrenos privados em públicos anuncia um novo uso, uma integração maior com as necessidades da cidade. Mas, neste caso, o tapume veio só esconder o miolo do triângulo mais uma vez. Esconder dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados. Mas, agora, com um agravante: dois mil trezentos e trinta e oito metros quadrados de propriedade pública.
Assim como antes, a previsão de construção não se realizou. O terreno ficou vazio entre 2011 e 2014, quando o novo reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antonio Zago, decidiu reverter a política de expansão imobiliária de Rodas. Os terrenos adquiridos seriam leiloados. Desde 2014 é possível ver uma placa de “VENDE” acima de um dos tapumes mal-ajambrados na rua da Consolação, número 268.
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A FAPESP vendeu por R$7,4 milhões em 2011, abaixo do preço de mercado. A USP previa gastar R$11 milhões com a edificação. A única coisa feita foram as estacas. Nove anos depois, a USP quer vender por mais de R$28 milhões. O terreno segue vazio.
Os curadores do projeto museu do louvre pau-brazyl iniciaram os contatos com a USP em 2017. Receberam uma resposta formal da universidade apenas em março de 2019. O pedido era simples: requeriam apenas e tão somente a possibilidade de usar o espaço vazio.
A resposta também foi igualmente simples: uma negativa. A afirmação da USP é clara: este imóvel está à venda. Não venham querer fazê-lo pulsar ou vibrar, não venham querer abrir uma porta para tornar este miolo visível, não venham querer. Trata-se de propriedade, não de função social da propriedade. Queremos manter a invisibilidade.
A resposta não veio apenas em forma de carta. Um dia após o término da exposição 3º ato: o verso, o tapume mal-ajambrado deu lugar a um muro de tijolos, com arame farpado. Um muro para demarcar a negativa, para demarcar a propriedade. Há ainda seguranças que fazem a ronda diária da ociosidade.
A carta e o muro mostraram que a universidade manteria sua posição diante de qualquer apelo. Nem mesmo com um abaixo-assinado por dezenas de artistas e professores. Nem mesmo com o endosso de três departamentos da própria Universidade (Escola de Comunicações e Artes, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). Nem mesmo com reunião com o pró-reitor. Nem mesmo para fazer o cálculo de que um terreno ocupado por artistas poderia aumentar a atratividade para a venda em um bairro em gentrificação. Nem mesmo.
Como é possível esquecer um terreno vazio em meio ao centro de São Paulo? Como é possível que, de 1991 até agora, a única função de fato exercida neste espaço tenha sido guardar carros? Terrenos vazios em áreas centrais não são apenas objeto de disputas judiciais ou de trâmites burocráticos labirínticos. Os territórios da cidade estão em constante disputa por acesso, pelos usos e funções. A poucos metros da rua da Consolação número 268, é possível encontrar exemplos vivos de como a cidade pulsa em tensões constantes. No eixo da rua da Consolação, basta andar um pouco para chegar até o Parque Augusta – que teria sido um conjunto de torres não fosse pela mobilização ativista. No eixo da rua São Luís, basta andar um pouco para chegar até a Ocupação da Nove de Julho – que teria permanecido como prédio abandonado não fosse pela luta incansável dos movimentos de moradia. São espaços de disputa ferrenha e cotidiana. O miolo do triângulo não faz parte de uma disputa feroz pelo espaço da cidade, ele é parte do nosso esquecimento. E quando esquecemos de parte da cidade, ela simplesmente deixa de existir.
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Esse texto foi originalmente publicado no livro vermelhos (museu do louvre pau-brazyl, 2020) e revisado em junho de 2021.
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- 1Depoimento de Celso Antônio Bandeira de Mello em HAMBURGER, Amélia Império (org.) Fapesp 40 anos: abrindo fronteiras. São Paulo: FAPESP/Edusp, 2004, p.448.
- 2AKAISHI, Ana Gabriela, SILVEIRA, Ana Flávia Lima da. Função social da propriedade e imóveis ociosos no centro de São Paulo: os estacionamentos rotativos e os proprietários de imóveis. Anais do XVII ENANPUR, 2019.
- 3Ata da 100ª reunião ordinária da Comissão Executiva da Operação Urbana Centro, realizada em 30 de maio de 2012, p.2.
- 4SILVA, Cedê. USP prevê gastar R$ 11 milhões para erguer prédio administrativo no centro. O Estado de São Paulo, 30 de novembro de 2011. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,usp-preve-gastar-r-11-milhoes-para-erguer-predio-administrativo-no-centro,805095. Acesso em 19.01.2020.
- 5SCARPIN, Paula. Rodas em ação. Piauí, n.71, agosto de 2012. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/rodas-em-acao/