estamos no topo dos vinte e cinco andares do edifício louvre, avenida são luís, são paulo. um grupo de senhoras compartilha conosco a aridez do altíssimo quadrado. pequenas árvores recém-envasadas pontilham espaçadamente o local. daqui temos uma visão aberta, quase aérea, da esfumaçada cidade. sentamos ao lado da piscina, debaixo do teto modernista que se bifurca espelhando dois caminhos ondulantes. fala-se em proto-modernismo, fala-se no tropeço em tarkovski, na construção de um sino, o sino da igreja da consolação, cujos dobres, por um mês, foram trocados por uma ave maria. é o começo da história deste coliseu que é a inversão das fachadas, não apenas do louvre, mas também do copan e do são luiz plaza, cujos versos dão no único terreno baldio em um raio de não sei quantos quilômetros centrais da cidade de são paulo. o terreno foi um estacionamento há alguns anos. um dia virou uma obra de barulho ensurdecedor. seis subsolos furados, diariamente, aguando dinheiro terra adentro. a obra jamais passou de um buraco. um dia parou, taparam tudo. o mato voltou a ser um lote vago.
nos levantamos e passeamos pelo altíssimo plano. daqui vemos a serra da cantareira, a igreja da consolação, vemos são paulo e suas aspas. vemos o verso do copan, colmeia de quadrados. em um deles uma mulher, fartos seios nus, cabelos ondulados, uma vênus, atrás dela, deitado na cama, um boy magrinho, nu também. noutro nicho da colmeia dois boys, a cortarem-se o cabelo. o copan é uma buceta na paisagem fálica das edificações paulistanas. descemos até a garagem. quatro andares de garagem. há elevadores para carros. descemos e subimos as escadas que interligam as garagens. diferentes cheiros se alternam. de repente, um cheiro antigo, de décadas. um morador ajusta o motor de seu fusca. por uma fresta da janela vê-se o jardim que seu jaime, um funcionário do louvre, improvisa há anos com as plantas que as pessoas abandonam ao se mudar daqui. chegamos, então, ao pé do verso do edifício azul e rosa, onde há um terraço baixo que é um não-lugar. ninguém vai lá. ninguém vem aqui, mas é aqui o camarote do coliseu, no qual mora a solitária leitora de romances maria aparecida do seiscentos e quinze. aqui nunca aconteceu nada, graças a deus, junta água, é muito perigoso.
um acontecimento revira os fatos, a tétrica cena do corretor de imóveis que dispõe uma cadeira embaixo de uma obra pendurada no teto. a obra ficara por uma semana, inadvertidamente, no exato ângulo de sua visão. tamanho o seu incômodo. ele sobe e arranca a parte removível da obra, uma costura de pano e látex. ele a leva para o banheiro, onde permanece por cerca de quinze minutos. quinze minutos. quando sai do banheiro, a obra já não está em suas mãos. tamanho seu desejo. depois ele diria que foi um mal-entendido. há quem diga que a obra valorizou o lugar onde hoje funciona uma loja de sapatos.
chegamos à casa um, lugar em forma de sim, lugar em forma de acolhimento, em forma de amor a corpos, pessoas, existências renegadas pelo normal. um centro cultural no sentido mais amplo da cultura. cama. comida. atendimento psico-social. ateliê de artes. espaço multi-uso. curso preparatório para o enem. aulas de inglês. costura. canto. dança. maquiagem. tudo de graça. a casa um recebe vidas diminuídas pelo preconceito e lhes restaura a potência ontológica, aumentando seu fator de existência no mundo.
vou contar uma história, eu estava sentado em frente ao teatro onde ensaiamos quando um dos atores saiu e em silêncio andou até a esquina. na peça ele fazia uma baleia que perde os óculos a ver passar os carros, fui atrás dele, me sentei ao seu lado, ele se levantou, eu o segui e quando o alcancei ele me olhou e disse, gosto muito de andar, vou longe, mas um dia me perdi e minha mãe teve que chamar a polícia, me encontraram e me levaram para casa.
chegamos ao sítio morrinhos. centro de arqueologia sensorial. um pé de abacate e outro de jaboticaba, os maiores que eu já vi, são do século xix! o passado inteiro em dois mil e dezoito. mais de sessenta sítios arqueológicos só na cidade de são paulo. no sítio morumbi, nos anos sessenta, foram encontrados artefatos de cinco mil e seiscentos anos atrás, toda uma oficina lítica encravada num matacão. carijós. guainás. tupi-guaranis. no vale do ribeira um tambaqui de nove mil anos. tem esqueleto na rebouças, no sapopemba, na anhanguera. vias que hoje se sobrepõem a trilhas que já existiam. urnas funerárias pra todo lado. no belenzinho, foram fazer um cemitério e já havia um. debaixo do sesc pinheiros há um sítio arqueológico. no brás, em mil oitocentos e noventa e seis foi encontrada uma urna funerária ainda contendo restos humanos. são lindas as urnas, para começar são redondas. no largo da batata, toda uma aldeia rajada por peabirus. de cusco a são paulo num “caminho de gramado amassado”. a trilha dos tupiniquins cruzava o vale do anhangabaú e seguia pelo traçado que hoje é o das avenidas consolação e rebouças, cruzando depois o rio pinheiros. encontro com o chão. arqueologia da diáspora. mandinga na casa grande. qual o impacto da uma avenida? o que os arqueólogos encontrarão de nós em duzentos e cinquenta anos? moradores de rua? o bixiga é um quilombo, a liberdade é um quilombo.
enquanto isso, no jardim panorama, neusa tem cinquenta anos e vive num terreno que vale muito mais que trezentos mil. há mais de uma década ela cozinha para os funcionários do castelo, que lá não têm onde comer. seu papagaio chama todo mundo de filho da puta e apesar da faixa de gaza, a casa da neusa é o lugar mais seguro de são paulo. recebi o inferno na caixa de correio, diz a letra, letras são rezas, traduzem a miséria da situação. forma é a última coisa. cor é luz. luz é cor. cor é três igual a preto e luz é três igual a branco. quais as cores do dia? quais as cores da sua personagem? da sua cena? roxo oblíquo? verde pacífico? vermelho vibrante? s’embora conquistar coincidências.
e depois festa, ver a cidade amanhecer luzes de azul e rosa e descobrir que, neste fracasso pós-eleições, minha cor é o amarelo. pessimismo, otimismo, festa, delírio, ritual de sobrevivência, não é fuga, é verso, é alívio da história. portão fechado? a gente pula. e refaz um experimento da década de setenta com três regras básicas: primeira, sem projeto, sem fim; segunda, em silêncio; terceira, liberdade total de edição e modificação. não tem nome, materiais sortidos, é um território, uma construção, um coletivo trabalhando no silêncio que é a união de todas as línguas, e olha o que a gente construiu, nunca imaginei – um penetrável! que levamos para a praça onde as pessoas dormem ali onde se deitam. depois uma oficina de pipas, em geral é esse o tom, é a casa da avó, e a avó é uma bicha.
um quadrado de cinco pontas. quatro mulheres caminham sob uma placa de madeirite que sustentam pelo topo da cabeça. sobre a placa uma caixa de som, um neo andor. caminham no mesmo passo, uma micro máquina social. a moral na inclinação de quem vê. seus corpos, suas proporções, seu caminhar, em inseparabilidade sistêmica. a rosa dos ventos é o chão. nosso lugar comum. música brasileira em ordem cronológica. formam uma espécie de casa que, naturalmente, abriga aqueles que não a têm. um homem segurando balões habita por algum tempo a casa errante. um meio louco de transporte. estamos no viaduto do chá. quando chegamos ao teatro municipal, já estamos no funk do fim dos anos dez. algumas pessoas, atingidas pelo som, dançam enquanto aguardam o sinal de pedestres. uma mulher, magérrima, de vestido azul e barriga de uns sete meses ou mais, é a nova moradora da casa. bastante diferente do último inquilino ela é toda para fora, uma mulher propriamente pública, que nos engole a todos. quando perde a graça, ela deixa a casa e adentra com a amiga uma farmácia. já é noite.
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Esse texto foi originalmente publicado no livro vermelhos (museu do louvre pau-brazyl, 2020) e revisado em junho de 2021.
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